Acredito em anjos, claro. Acredito até mesmo que os anjos conversem com crianças pequenas, mas quando as aparições são de gente adulta, as coisas mudam. Conheço uma série de histórias de pastores e gente do campo que afirmaram ter visto uma mulher de branco — e isso terminou por destruir suas vidas, já que as pessoas começam a procurá-los em busca de milagres, os padres se preocupam, as aldeias se transformam em centros de peregrinação, e as pobres crianças acabam suas vidas em um convento. Fiquei portanto muito preocupada com esta história; nesta idade Sherine devia estar mais preocupada com estojos de maquilagem, pintar as unhas, assistir novelas românticas ou programas infantis na TV. Algo estava errado com minha filha, e fui procurar um especialista.
— Relaxe — ele disse.
Para o pediatra especializado em psicologia infantil, como para a maioria dos médicos que cuidam destes temas, os amigos invisíveis são uma espécie de projeção dos sonhos, e ajudam a criança a descobrir seus desejos, expressar seus sentimentos, tudo isso de uma maneira inofensiva.
— Mas uma mulher de branco?
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Ele respondeu que, talvez, a nossa maneira de ver ou explicar o mundo não estivesse sendo bem compreendida por Sherine. Sugeriu que, pouco a pouco, começássemos a preparar o terreno para dizer que ela tinha sido adotada. Na linguagem do especialista, a pior coisa que podia acontecer, é que ela descobrisse por si mesma — passaria a duvidar de todo mundo. Seu comportamento poderia tornar-se imprevisível.
A partir daquele momento, mudamos nosso diálogo com ela. Não sei se o ser humano consegue lembrar-se de coisas que lhe aconteceram quando era ainda bebê, mas começamos a tentar mostrar-lhe o quanto era amada, e que não havia mais necessidade de refugiar-se em um mundo imaginário. Ela precisava entender que o seu universo visível era tão belo quanto podia ser, seus pais a protegeriam de qualquer perigo, Beirute era linda, as praias estavam sempre cheias de sol e gente. Sem confrontar-me diretamente com a tal “mulher”, passei a ficar mais tempo com minha filha, convidei seus amigos de escola para freqüentarem nossa casa, não perdia uma só oportunidade para demonstrar todo nosso carinho.
A estratégia deu resultado. Meu marido viajava muito, Sherine sentia falta, e em nome do amor resolveu mudar um pouco seu estilo de vida. As conversas solitárias começaram a ser substituídas por brincadeiras entre pai, mãe e filha.
Tudo corria bem até que certa noite ela veio chorando ao meu quarto, dizendo que estava com medo, que o inferno estava próximo.
Eu estava sozinha em casa — o marido mais uma vez tivera que se ausentar, e achei que esta era a razão de seu desespero. Mas inferno? O que será que estavam ensinando na escola ou na igreja? Decidi que no dia seguinte iria até lá conversar com a professora.
Sherine, entretanto, não parava de chorar. Eu a levei até a janela, mostrei o Mediterrâneo lá fora, iluminado pela lua cheia. Disse que não havia demônios, mas estrelas no céu e gente caminhando pelo
que não precisava ter medo, que ficasse tranqüila, mas ela continuava a chorar e tremer. Depois de quase meia hora tentando acalmá-la, comecei a ficar nervosa. Pedi que parasse com aquilo, ela já não era mais uma criança. Imaginei que talvez tivesse ocorrido sua primeira menstruação; discretamente perguntei se algum sangue estava correndo.
— Muito.
Peguei um pouco de algodão, pedi que deitasse para que eu pudesse cuidar do seu “ferimento”. Não era nada, amanhã eu lhe explicaria. Entretanto, a menstruação não tinha chegado. Ela ainda chorou um pouco, mas devia estar cansada, porque logo dormiu.
E, no dia seguinte, o sangue correu de manhã.
Quatro homens foram assassinados. Para mim, era apenas mais uma das eternas batalhas tribais a que meu povo estava acostumado. Para Sherine, não devia ser nada, porque nem sequer mencionou o seu pesadelo da noite anterior.
Entretanto, a partir dessa data, o inferno estava chegando, e até hoje não se afastou mais. No mesmo dia, 26
palestinos foram mortos em um ônibus, como vingança pelo assassinato. Vinte e quatro horas depois, já não se podia caminhar pelas ruas, por causa dos tiros que vinham de todos os lados. As escolas fecharam, Sherine foi trazida às pressas para casa por uma de suas professoras, e a partir daí, todos perderam controle da situação. Meu marido interrompeu sua viagem no meio e voltou para casa, telefonando dias inteiros para os seus amigos do governo, e ninguém conseguia dizer algo que fizesse sentido.
Sherine ouvia os tiros lá fora, os gritos de meu marido dentro de casa, e — para minha surpresa — não dizia uma palavra. Eu tentava sempre lhe dizer que era passageiro, que em breve poderíamos ir de novo à praia, mas ela desviava os olhos e pedia algum livro para ler, ou um disco para ouvir. Enquanto o inferno se instalava aos poucos, Sherine lia e escutava música.