Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não te penso nem te sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir, e os meus sentimentos góticos de evocar-te.
Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem nítida de vazio da minha imperfeição compreendendo-se. O meu ser sente-te vagamente, como se fosse um cinto teu que te sentisse. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu para que o causes, ou estranha lua submarina para que, não sei como, o finjas.
Quem pudesse criar o Novo Olhar com que te visse, os Novos Pensamentos e Sentimentos que houvessem de te poder pensar e sentir!
Ao querer tocar no teu manto as minhas expressões cansam o esforço estendido dos gestos das suas mãos, e um cansaço rígido e doloroso gela-se nas minhas palavras. Por isso, curva um voo de ave, que parece que se aproxima e nunca chega, em torno ao que eu quereria dizer de ti, mas a matéria das minhas frases não sabe imitar a substância ou do som dos teus passos ou do rasto dos teus olhares, ou da cor triste e vazia da curva dos gestos que não fizeste nunca.
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E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faz o teu dever de mera taça. Cumpre o teu mister de ânfora inútil . Ninguém diga de ti o que a alma do rio pode dizer das margens, que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar.
Que o teu génio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica. Não sejas nunca mais nada.
Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre o sonho de amar-te. És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver...
O amante visual
Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo. Sou sujeito a paixões visuais. Guardo intacto o coração dado a mais irreais destinos.
Não me lembro de ter amado senão o "quadro" em alguém, o puro extenor — em que a alma não entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo — e assim diferente dos quadros que os pintores fazem.
Amo assim: fixo, por bela, atraente, ou, de outro qualquer modo, amável, uma figura, de mulher ou de homem — onde não há desejo não há preferência de sexo — e essa figura me obceca, me prende, se apodera de mim. Porém não quero mais que vê-la, nem olho nada com mais horror que a possibilidade VI de vir a conhecer e a falar à pessoa real que essa figura aparentemente manifesta.
Amo com o olhar, e nem com a fantasia. Porque nada fantasio dessa figura que me prende. Não me imagino ligado a ela de outra maneira, porque o meu amor decerto não tem de mais para dizer. Não me interessa saber quem é, que faz, que pensa a criatura que me dá para ver o seu aspeto exterior.
A imensa série de pessoas e de coisas que forma o mundo é para mim uma galeria intérmina de quadros, cujo interior me não interessa. Não me interessa, porque a alma é monótona e sempre a mesma em toda a gente; diferem apenas as suas manifestações pessoais, e o melhor dela é o que transborda para o sonho, para os modos, para os gestos, e assim entra para o quadro que me prende, e em que visiono caras constantes a essa afeição.
Para mim uma criatura não tem alma. A alma é só com ela mesma .
Assim vivo, em visão pura, o exterior animado das coisas e dos seres, indiferente, como um deus de outro mundo, ao conteúdo-espírito deles. Aprofundo o ser próprio só em extensão, e quando anseio a profundeza, é em mim, e no meu conceito das coisas, que a procuro.
Que pode dar-me o conhecimento pessoal da criatura que assim amo em décor? Não uma desilusão, porque, como nela só amo o aspeto, e nada dela fantasio, a sua estupidez ou mediocridade nada tira, porque eu não esperava nada senão o aspeto que não tinha que esperar, e o aspeto persiste. Mas o conhecimento pessoal é nocivo porque é inútil, e o inútil material é nocivo sempre. Saber o nome da criatura para quê? E é a primeira coisa que, apresentado a ela, fico sabendo.