Читаем Livro do Desassossego полностью

Olha-se, mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.

As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.

Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. E uma vontade de dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater  no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.

Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se consciente- mente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo.

Que é do pandeiro, ó urso parado?

79.

Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfato tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.

Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.

Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.

Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfato e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, "A minha alma está cansada da minha vida!"

80.

Intervalo doloroso

Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.

Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.

Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!

Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um todo não me esmagaria os ombros do pensamento.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge, então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objetos me pesam por a alma dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela.

81.

As carroças da rua ronronam sons separados, lentos, de acordo, parece, com a minha sonolência. É a hora do almoço mas fiquei no escritório. O dia é tépido e um pouco velado. Nos ruídos há, por qualquer razão, que talvez seja a minha sonolência, a mesma coisa que há no dia.

82.

Não sei que vaga carícia, tanto mais branda quanto não é carícia, a brisa incerta da tarde me traz à cara e à compreensão. Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor, um momento, como uma veste que deixe de roçar numa chaga.

Перейти на страницу:
Нет соединения с сервером, попробуйте зайти чуть позже