Читаем O homem duplicado полностью

Já no autocarro que o irá deixar perto do prédio em que vive há meia dúzia de anos, isto é, desde que se divorciou, Máximo Afonso, servimo-nos aqui da versão abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou aquele que é seu único senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano, estando tão próxima, apenas duas linhas atrás, viria desservir gravemente a fluência da narrativa, Máximo Afonso, dizíamos, achou-se a perguntar a si mesmo, de súbito intrigado, de súbito perplexo, que estranhos motivos, que particulares razões teriam sido as que levaram o colega de Matemática, tinha faltado dizer que é de Matemática o colega, a aconselhar-lhe com tanta insistência o filme que viera alugar, quando a verdade é que, até este dia, nunca a chamada sétima arte havia sido assunto de conversa entre ambos. Ainda se perceberia a recomendação se se tratasse de uma boa fita, das indiscutíveis, em tal caso o agrado, a satisfação, o entusiasmo pelo descobrimento de uma obra de alta qualidade estética poderiam ter obrigado o colega, durante o almoço na cantina ou no intervalo de duas aulas, a puxar-lhe pressurosamente pela manga e dizer, Não me lembro de que alguma vez tenhamos falado de cinema, mas agora digo-lhe, meu caro, tem de ver, é indispensável que veja Quem Porfia Mata Caça, que é precisamente o título do filme que Tertuliano Máximo Afonso leva dentro da pasta, também a informação estava a faltar. Então o professor de História perguntaria, E em que cinema o exibem, ao que o de Matemática replicaria, rectificando, Não exibem, exibiram, o filme já tem uns quatro ou cinco anos, não percebo como foi que se me escapou na estreia, e logo, sem pausa, inquieto pela possível inutilidade do conselho que com tanto fervor estava oferecendo, Mas talvez você já o tivesse visto, Não vi, vou pouco ao cinema, contento-me com o que passa na televisão, e mesmo assim, Pois então deveria vê-lo, encontra-o em qualquer loja da especialidade, alugue-o se não lhe apetecer comprar. O diálogo poderia ter decorrido mais ou menos desta maneira se o filme merecesse os louvores, mas as coisas, na realidade, passaram-se com menos ditirambos, Não é para me meter na sua vida, dissera o de Matemática enquanto descascava uma laranja, mas de há uns tempos a esta parte encontro-o a modo que abatido, e Tertuliano Máximo Afonso confirmou, É verdade, tenho andado um pouco em baixo, Problemas de saúde, Não creio, tanto quanto posso saber não estou doente, o que sucede é que tudo me cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo, Distraia-se, homem, distrair-se foi sempre o melhor remédio, Dê-me licença que lhe diga que distrair-se é o remédio de quem não precisa dele, Boa resposta, não há dúvida, no entanto alguma coisa terá de fazer para sair do marasmo em que se encontra, Da depressão, Depressão ou marasmo, dá igual, a ordem dos factores é arbitrária, Mas não a intensidade, Que faz fora das aulas, Leio, ouço música, de vez em quando passo por um museu, E ao cinema, vai, Cinema frequento pouco, contento-me com o que vai passando na televisão, Podia comprar uns vídeos, organizar uma colecção, uma videoteca, como se diz agora, Sim, realmente podia, o pior é que já falta espaço para os livros, Então alugue, alugar é a solução melhor, Tenho uns quantos vídeos, uns documentários científicos, ciências da natureza, arqueologia, antropologia, artes em geral, também me interessa a astronomia, assuntos deste tipo, Tudo isso está bem, mas precisa de se distrair com histórias que não ocupem demasiado espaço na cabeça, por exemplo, uma vez que a astronomia lhe interessa, imagino que igualmente lhe poderia interessar a ficção científica, as aventuras no espaço, as guerras das estrelas, os efeitos especiais, Tal como veio e entendo, os tais efeitos especiais são o pior inimigo da imaginação, essa manha misteriosa, enigmática, que tanto trabalho deu aos seres humanos inventar, Meu caro, você exagera, Não exagero, quem exagera são os que querem convencer-me de que em menos de um segundo, com um estalido de dedos, se põe uma nave espacial a cem mil milhões de quilómetros de distância, Reconheça que para criar esses efeitos que você desdenha tanto, também se necessita imaginação, Sim, mas é a deles, não é a minha, Sempre terá a faculdade de usar a sua começando do ponto aonde a deles tinha chegado, Ora, ora, duzentos mil milhões de quilómetros em lugar de cem, Não esqueça que o que chamamos hoje realidade foi imaginação ontem sim, mas a realidade, olhe o Júlio Verne, de agora é que para ir a Marte, por exemplo, e Marte em termos astronómicos até se pode dizer que está ali ao virar da esquina, são necessários nada menos que nove meses, depois haverá que ficar lá à espera mais seis meses até que o planeta esteja de novo no ponto óptimo para se poder regressar, e finalmente fazer outra viagem de nove meses para chegar à Terra, total, dois anos de suprema chatice, um filme sobre uma ida a Marte em que a verdade dos factos fosse respeitada, seria a mais enfadonha estopada que alguma vez se viu, Já percebi por que é que você se aborrece, Porquê, Porque não há nada que o contente, Contentar-me-ia com pouco, se o tivesse, Algo terá por aí, uma carreira, um trabalho, à primeira vista não lhe encontro motivos para lamentos, É a carreira e o trabalho que me têm a mim, não eu a eles, Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um génio da Matemática em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema, Se você me viesse com uma equação a duas incógnitas ainda lhe poderia oferecer os meus préstimos de especialista, mas, tratando-se de uma incompatibilidade desse calibre, a minha ciência só serviria para complicar-lhe a vida, por isso digo-lhe que se entretenha a ver uns filmes como quem toma tranquilizantes, não que passe a dedicar-se às matemáticas, que puxam muito pela cabeça, Tem alguma ideia, Ideia de quê, De um filme interessante' que valha a pena, É o que não falta, entra na loja, dá uma volta e escolhe, Mas sugira-me um, ao menos.

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