Читаем O homem duplicado полностью

Tertuliano Máximo Afonso levantou do chão, onde tinha caído, a fotocópia da carta que António Claro trouxera, abriu depois a gaveta da secretária em que havia guardado a resposta da produtora, e, com os dois papéis na mão, mais a fotografia que havia tirado com a barba postiça, dirigiu-se à cozinha. Pô-los dentro do lava-louça, chegou-lhes um fósforo aceso e ficou a olhar o rápido trabalho do fogo, a labareda que ia mastigando e engolindo os papéis e logo os vomitava feitos em cinza, as rápidas cintilações que teimavam em mordê-los quando a chama, aqui e além, parecia ter-se extinguido. Deu um jeito ao que ainda restava para que acabassem de queimar-se, depois deixou correr a água da torneira até que a última partícula de cinza desapareceu pelo cano abaixo. A seguir foi ao quarto, retirou as cassetes de vídeo do armário onde as havia escondido e regressou à sala. A roupa de António Claro, por ele trazida da casa de banho, encontrava-se arrumada em cima da cadeira de assento estofado. Tertuliano Máximo Afonso despiu-se todo. Franziu o nariz de repugnância ao pôr a roupa interior que havia sido usada pelo outro, mas não havia remédio, a tanto o obrigava a necessidade, que é um dos nomes que toma o destino quando lhe convém disfarçar-se. Agora que se via convertido à situação de outro de Tertuliano Máximo Afonso, mais não lhe restava que tornar-se no António Claro que o mesmo António Claro abandonara. Por sua vez, quando amanhã voltar para recuperar a roupa, António Claro só como Tertuliano Máximo Afonso poderá sair à rua, terá de ser Tertuliano Máximo Afonso por todo o tempo que roupas suas, próprias, estas que aqui deixou ou outras, tardarem a devolver-lhe a identidade de António Claro. Quer se queira, quer não, o hábito é o melhor que há para fazer o monge. Tertuliano Máximo Afonso aproximou-se da mesa em que António Claro tinha deixado os objectos pessoais e, metodicamente, concluiu o seu trabalho de transformação. Principiou pelo relógio de pulso, enfiou a aliança no dedo anelar esquerdo, meteu num bolso das calças o pente e o lenço com as iniciais AC, no bolso do outro lado as chaves da casa e do carro, no de trás os documentos de identificação que, em caso de dúvida, como indiscutível António Claro o haverão de acreditar. Está pronto para sair, só lhe falta o retoque final, a barba postiça que António Claro trazia quando aqui entrou, dir-se-ia que adivinhara que iria ser necessária, mas não, a barba só tinha ficado à espera de uma coincidência, se às vezes tardam anos a chegar, outras vezes vêm a correr, todas em fila, umas atrás das outras. Tertuliano Máximo Afonso foi à casa de banho para rematar o disfarce, de tanto tirar e pôr, de tanto passar de cara a cara, a barba já pega mal, já ameaça tornar-se suspeita ao primeiro olhar de lince de um agente de autoridade ou à sistemática desconfiança de um cidadão timorato. Melhor ou pior, acabou finalmente por agarrar-se à pele, agora só terá de aguentar-se o tempo necessário para que Tertuliano Máximo Afonso encontre um contentor de lixo num local não demasiado concorrido. Aí culminará a barba postiça a sua breve mas agitada história, aí acabarão, entre restos fétidos e trevas, as cassetes de vídeo. Tertuliano Máximo Afonso voltou à sala, passou os olhos em redor a ver se esquecia algo que lhe viesse a fazer falta, depois entrou no quarto, sobre a mesa-de-cabeceira está o livro das antigas civilizações mesopotâmicas, não existe nenhum motivo para o ter consigo, mas apesar disso irá levá-lo, na verdade não há quem perceba o espírito humano, que falta faria a Tertuliano Máximo Afonso a companhia dos semitas amorreus e dos assinos, se em menos de vinte e quatro horas vai estar outra vez nesta sua casa. Alea jacta est, murmurou para os seus adentros, não há mais que discutir, o que tiver de acontecer, acontecerá, não poderá escapar a si mesmo. O rubicão é esta porta que se fecha, esta escada que se desce, estes passos que levam àquele automóvel, esta chave que o abre, este motor que suavemente o faz deslizar pela rua fora, a sorte está lançada, agora os deuses que decidam. Este mês é Agosto, o dia é sexta-feira, há pouco trânsito de carros e pessoas, tão longe estava a rua aonde se dirige e de repente fez-se perto. É noite há mais de meia hora. Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente do prédio. Antes de sair olhou para as janelas e em nenhuma delas viu luz. Hesitou, perguntou-se, E agora, que faço, ao que respondeu o raciocínio, Vamos a ver, não percebo essa indecisão, se és, como quiseste parecer, António Claro, o que tens a fazer é subir tranquilamente a tua casa, e se as luzes estão apagadas, por algum motivo há-de ser, repara que não são as únicas em todo o prédio, e, como não és gato para poderes ver na escuridão, o que tens que fazer é acendê-las, isto supondo que, por qualquer causa que desconhecemos, não há ninguém à tua espera, ou melhor, a causa sabemo-la todos, lembra-te de que disseste à tua mulher que, por questões de trabalho, terias de ficar esta noite fora de casa, agora aguenta-te. Tertuliano Máximo Afonso atravessou a rua com o livro dos mesopotâmicos debaixo do braço, abriu a porta do prédio, entrou no elevador e viu que tinha companhia, Boas noites, estava à tua espera, disse o senso comum, Era inevitável que aparecesses, Que ideia é essa de aqui vires, Não armes em ingénuo, sabe-lo tão bem como eu, Vingar-te, desforrar-te, dormir com a mulher do inimigo, já que a tua está na cama com ele, Exacto, E depois, Depois, nada, à Maria da Paz nunca lhe passará pela cabeça que dormiu com o homem trocado, E estes daqui, Estes vão ter de viver a pior parte da tragicomédia, Porquê, Se és o senso comum devias sabê-lo, Perco qualidades nos ascensores, Quando o António Claro entrar amanhã em casa vai ter a maior das dificuldades para explicar à mulher como foi que conseguiu dormir com ela e ao mesmo tempo estar a trabalhar fora da cidade, Não imaginei que fosses capaz de tanto, é um plano absolutamente diabólico, Humano, meu caro, simplesmente humano, o diabo não faz planos, aliás, se os homens fossem bons, ele nem existiria, E amanhã, Arranjarei um pretexto para sair cedo, Esse livro, Não sei, talvez o deixe ficar aqui como recordação. O elevador parou no quinto andar, Tertuliano Máximo Afonso perguntou, Vens comigo, Sou o senso comum, aí dentro não há lugar para mim, Então, até à vista, Duvido.

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