Fui até a cozinha, preparei uma sopa de cebola, um prato de tabule, esquentei o pão sem fermento, coloquei a mesa, e almoçamos juntos. Conversamos sobre coisas sem importância, que nestes momentos nos unem e justificam o amor de estarmos ali, tranqüilos, mesmo que a tempestade esteja arrancando árvores e semeando destruição lá fora. Claro, no final da tarde a minha filha e meu neto sairiam por aquela porta, para enfrentarem de novo os ventos, os trovões, os raios — mas isso era uma escolha sua.
— Mamãe, você disse que faria qualquer coisa por mim, não é verdade?
Claro que era verdade. Inclusive dar minha vida, se fosse necessário.
— Não acha que eu também deveria fazer qualquer coisa por Viorel?
— Penso que esse é o instinto. Mas além do instinto, essa é a maior manifestação do amor que temos.
Ela continuou comendo.
— Você sabe que entraram com um processo na justiça, e que seu pai está pronto para ajudá-la, se assim desejar.
— Claro que desejo. É minha família.
Pensei duas vezes, três vezes, mas não me contive:
— Posso lhe dar um conselho? Sei que você tem amigos importantes. Falo daquele jornalista. Por que não pede a ele que publique sua história, que conte sua versão dos fatos? A imprensa está dando muito espaço a este reverendo, e as pessoas terminam por lhe dar razão.
— Então, além de aceitar o que faço, você está querendo me ajudar?
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— Sim, Sherine. Mesmo que não a entenda, mesmo que às vezes sofra como a Virgem deve ter sofrido sua vida inteira, mesmo que você não seja Jesus Cristo e tenha uma grande mensagem para passar ao mundo, eu estou do seu lado, e quero vê-la vitoriosa.
Heron Ryan, jornalista
Athena entrou quando eu estava procurando anotar freneticamente o que imaginava ser a entrevista ideal sobre os acontecimentos de Portobello e o renascer da Deusa. Era um assunto delicado, delicadíssimo.
O que eu via no armazém era uma mulher dizendo: “vocês são capazes, façam o que a Grande Mãe ensina — confiem no amor e os milagres serão realizados”. E a multidão concordava, mas isso não podia durar muito, porque estávamos em uma época onde a escravidão era a única maneira de encontrar a felicidade. O
livre-arbítrio exige uma responsabilidade imensa, dá trabalho, e traz angústia e sofrimento.
— Preciso que escreva algo sobre mim — pediu.
Respondi que devíamos esperar um pouco, o assunto podia morrer na semana seguinte, mas que havia preparado algumas perguntas sobre a Energia Feminina.
— No momento, as brigas e os escândalos interessam apenas ao bairro e aos tablóides: nenhum jornal respeitável publicou qualquer linha. Londres está cheia deste tipo de conflitos, e chamar a atenção da grande imprensa não é aconselhável. Melhor seria ficar duas ou três semanas sem reunir seu grupo.
“Entretanto, acho que o assunto da Deusa — tratado com a seriedade que merece, pode fazer muita gente levantar uma série de perguntas importantes.”
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— Durante um jantar, você disse que me amava. E agora, além de dizer que não quer me ajudar, está me pedindo para que renuncie às coisas em que acredito?
Como interpretar aquelas palavras? Será que finalmente aceitava o que lhe oferecera aquela noite, o que me acompanhava a cada minuto de vida? O poeta libanês havia dito que era mais importante dar que receber; embora fossem palavras sábias, eu fazia parte daquilo que chamam de “humanidade”, com minhas fraquezas, meus momentos de indecisão, meu desejo de simplesmente dividir a paz, escravizar-me aos meus sentimentos, entregar-me sem perguntar nada, sem mesmo querer saber se este amor era correspondido. Bastava permitir que a amasse, isso era tudo; tenho certeza que Hagia Sofia iria concordar inteiramente comigo.
Athena estava passando por minha vida já há quase dois anos, e eu tinha medo que continuasse seu caminho, desaparecesse no horizonte, sem que eu tivesse sido capaz de pelo menos acompanhá-
la em uma parte de sua jornada.
— Você está falando de amor?
— Estou pedindo sua ajuda.
O que fazer? Controlar-me, manter o sangue-frio, não precipitar as coisas e terminar por destruí-las? Ou dar o passo que estava faltando, abraçá-la e protegê-la de todos os perigos?
— Eu quero ajudar — respondi, embora minha cabeça estivesse insistindo para dizer “não se preocupe com nada, eu penso que te amo”. — Peço que confie em mim; faria tudo, absolutamente tudo por você. Inclusive dizer “não”, quando acho que é o caso, mesmo correndo o risco de que você não compreenda.
Contei que o secretário de redação do jornal havia proposto uma série de matérias sobre o despertar da Deusa, que incluía uma entrevista com ela. No início me parecera uma excelente idéia, mas agora entendia que era melhor esperar um pouco.
— Ou você deseja levar sua missão adiante, ou você deseja se defender. Sei que está consciente de que o que faz é 354
mais importante do que a maneira como é vista pelos outros. Está de acordo?
— Estou pensando em meu filho. Todos os dias agora tem problemas na escola.