Читаем O homem duplicado полностью

Toda esta informação a está ele a recolher neste momento de uma enciclopédia, movido finalmente pela curiosidade de saber alguma coisa acerca de um animal que desde o primeiro dia detestou. A curiosidade vinha de épocas atrasadas, de muito tempo atrás, mas só hoje, inexplicavelmente, é que estava a dar-lhe cabal satisfação. Inexplicavelmente, dizemos, e contudo deveríamos saber que não é assim, deveríamos saber que não há nenhuma explicação lógica, objectiva, para o facto de Tertuliano Máximo Afonso ter levado anos e anos sem conhecer mais do tamboril que o aspecto, o sabor e a consistência dos pedaços que lhe punham no prato, e de súbito, num certo momento de um certo dia, como se não tivesse nada mais urgente para fazer, eis que abre a enciclopédia e se informa. Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos, discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes, até encontrando. Se tivermos tempo e nos picar, impa ciente, a curiosidade, sempre acabaremos por saber o que é o tamboril. A partir de agora, quando o criado do restaurante tomar a sugerir-lhe o desgracioso lofídeo, o professor de História já saberá responder, Quê, esse horrendo bentónico que vive em fundos arenosos e lodosos, e acrescentará, definitivo, Nem pensar. A responsabilidade desta fastidiosa digressão piscícola e linguística tem-na toda Tertuliano Máximo Afonso por tardar tanto a meter Um Homem como Qualquer Outro no leitor de cassetes, como se estivesse estacado no sopé de uma montanha a deitar contas às forças de que vai precisar para lá chegar acima. Tal como parece que da natureza se diz, também a narrativa tem horror ao vazio, por isso, não tendo Tertuliano Máximo Afonso, neste intervalo, feito alguma coisa que valesse a pena relatar, não tivemos outro remédio que improvisar um chumaço de recheio que mais ou menos acomodasse o tempo à situação. Agora que ele se resolveu a tirar a cassete da caixa e a introduziu no leitor, poderemos descansar.

Passada uma hora, o actor ainda não havia aparecido, o mais certo era não ter entrado neste filme. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a fita até ao fim, leu os nomes com toda a atenção e cortou na lista de participantes aqueles que se repetiam. Se lhe pedíssemos que nos explicasse por palavras suas o que tinha acabado de ver, o mais provável seria que nos atirasse com o olhar de enfado que se reserva aos impertinentes e nos respondesse com uma pergunta, Tenho eu cara de me interessar por semelhantes vulgaridades. Alguma razão haveríamos que reconhecer-lhe, porque, em realidade, os filmes que passou até agora pertencem à denominada série bê, produtos rápidos para consumo rápido que não aspiram a mais que entreter o tempo sem perturbar o espírito, como muito bem tinha expressado, embora por outros termos, o professor de Matemática. Já outra cassete foi metida no leitor, a esta chamam-lhe A Vida Alegre e vai fazer aparecer o sósia de Tertuliano Máximo Afonso num papel de porteiro de cabaré, ou de buate, não se chegará a perceber com clareza suficiente qual das duas definições assenta melhor ao estabelecimento de mundanais diversões em que decorrem jovialidades copiadas sem pudor das diversas versões de A Viúva Alegre. Tertuliano Máximo Afonso chegou a pensar que não valia a pena ver o filme todo, o que lhe importava, isto é se o seu outro eu entrava ou não na história, já o sabia, mas o enredo era tão gratuitamente intricado que se deixou levar até ao fim, surpreendendo-se ao começar a perceber no seu íntimo um sentimento de compaixão pelo pobre diabo que, além de abrir e fechar as portas dos automóveis, não fazia outra coisa que levantar e baixar o boné de pala para cumprimentar com um composto nem sempre subtil de respeito e cumplicidade os elegantes frequentadores que entravam e saíam. Eu, ao menos, sou professor de História, murmurou.

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