– Tem estado doente durante a maior parte do nosso casamento – explica-me. – Sofre de uma... de uma doença crónica. Tem dias bons e dias maus. Às vezes, é o seu eu habitual, mas por vezes mal consegue sair da cama. E noutros dias...
– Sim...?
– Nada – esboça um sorriso débil. – Seja como for, se a porta estiver fechada, deixe-a simplesmente em paz. Precisa de descansar.
– Compreendo perfeitamente.
Por um instante, Douglas olha fixamente para a porta, uma expressão conturbada no rosto. Toca-lhe com as pontas dos dedos e abana a cabeça.
– Então, Millie – interroga. – Quando pode começar?
5
Em 1964, uma mulher chamada Kitty Genovese foi assassinada.
Kitty era uma empregada de bar de vinte e oito anos. Foi violada e esfaqueada por volta das três da manhã a cerca de trinta metros do seu apartamento em Queens. Gritou por socorro, mas, apesar de vários vizinhos a terem ouvido, ninguém foi em seu auxílio. O seu atacante, Winston Moseley, deixou-a fugazmente e regressou passados dez minutos, altura em que a esfaqueou várias outras vezes e lhe roubou cinquenta dólares. A mulher morreu das facadas.
– Kitty Genovese foi atacada, violada e assassinada diante de trinta e oito testemunhas – anuncia o professor Kindred ao auditório. – Trinta e oito pessoas assistiram ao seu ataque e nem uma saiu em seu auxílio ou chamou a polícia.
O nosso professor, um homem na casa dos sessenta cujo cabelo parece estar sempre espetado, fixa em cada um de nós um olhar acusador, como se fôssemos nós as trinta e oito pessoas que deixaram aquela mulher morrer.
– Isto – diz – é o efeito do espectador. É um fenómeno da psicologia social em que os indivíduos têm menor probabilidade de oferecer ajuda a uma vítima quando há outras pessoas presentes.
Os alunos na sala rabiscam os seus apontamentos ou escrevem nos seus portáteis. Eu limito-me a olhar fixamente para o professor.
– Pensem nisto – continua o professor Kindred. – Mais de três dúzias de pessoas permitiram que uma mulher fosse violada e assassinada, limitando-se a assistir sem nada fazer. Isto demonstra perfeitamente a difusão da responsabilidade num grupo.
Remexo-me no meu lugar, imaginando o que faria nessa situação – se olhasse pela minha janela e visse um homem a atacar uma mulher. Não ficaria sentada de braços cruzados, isso é certo. Saltaria pela janela, se fosse preciso.
Não. Não faria tal coisa. Aprendi a controlar-me melhor do que isso. Mas ligaria para o 112. Sairia com uma faca. Não faria nada com ela, mas talvez fosse suficiente para assustar o atacante.
Ao deixar o auditório, ainda me sinto abalada ao pensar naquela pobre rapariga que foi morta há mais de meio século. Quando saio para a rua, quase passo pelo Brock sem o ver. Tem de correr atrás de mim e de me agarrar no braço.
Pois claro. Fizemos planos para jantar.
– Ei – diz, sorrindo com os dentes mais brancos que eu alguma vez vi. Nunca lhe perguntei se os branqueia profissionalmente, mas deve fazê-lo. Os dentes não podem ser naturalmente assim tão brancos. É inumano. – Vamos celebrar esta noite, certo? O teu novo emprego.
– Certo – consigo esboçar um sorriso. – Desculpa.
– Estás bem?
– Estou só... abalada com a palestra que acabo de ter. Estivemos a ouvir sobre uma mulher nos anos sessenta que foi violada diante de trinta e oito espectadores, que não fizeram nada. Como pôde algo assim acontecer?
– Kitty Genovese, certo? – o Brock faz estalar os dedos. – Lembro-me disso da minha cadeira de Psicologia na Universidade.
– Certo. E é horrível.
– Mas é treta. – Enfia a mão na minha. Tem a palma quente. – A história foi sensacionalizada pelo New York Times.
Houve muito menos testemunhas do que o Times avançou. E, com base na posição dos apartamentos, a maioria não conseguiu ver o que realmente se passava e pensou que era apenas uma discussão entre namorados. E várias chamaram mesmo a polícia. Acho que ela estava nos braços de uma vizinha quando a ambulância chegou.
– Oh! – Sinto-me ligeiramente desconfortável, como tantas vezes me acontece quando o Brock sabe mais sobre algo do que eu. O que é bastante frequente, na verdade. Tanto quanto consigo perceber, o homem sabe praticamente tudo. É uma das muitas coisas que o tornam tão perfeito.
– Afinal não é uma história assim tão sensacional, pois não? – O Brock solta-me a mão e passa-me um braço à volta dos ombros. Capto um vislumbre do nosso reflexo na montra de uma loja e não posso deixar de pensar que ficamos bem juntos enquanto casal. Parecemos o tipo de casal que convidaria quinhentas pessoas para o seu casamento e depois compraria uma casa com uma vedação branca nos subúrbios, passando em seguida a enchê-la de filhos. – Seja como for, não devias sentir-te mal por algo que aconteceu há décadas. És simplesmente... demasiado simpática, sabes?
Sempre tive este impulso de ajudar as pessoas que estão em apuros. Infelizmente, às vezes, isso deixa-me a mim em apuros. Se ao menos fosse tão simpática quanto o Brock pensa que sou – não faz ideia.
– Desculpa, não o consigo evitar.