Enquanto enfio a chave na fechadura, que parece sempre prender, os passos tornam-se novamente mais altos. Passado um segundo, surge sobre mim uma sombra que não posso ignorar. Ergo o olhar e identifico um homem em meados da casa dos vinte, com uma gabardina preta e o cabelo escuro ligeiramente húmido. Parece-me vagamente familiar – sobretudo a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda.
– Vivo no segundo andar – relembra-me, ao ver a hesitação no meu rosto. – Segundo C.
– Oh! – respondo, apesar de continuar a não me sentir lá muito entusiasmada com a ideia de o deixar entrar.
O homem tira um molho de chaves do bolso e sacode-as diante do meu rosto. Uma delas tem os mesmos entalhes que a minha.
– Segundo C – repete. – Mesmo por baixo de si.
Acabo por ceder e entrar para deixar que o homem com a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda também entre no meu prédio, atendendo a que facilmente o poderia fazer à força se quisesse. Vou à frente, subindo pesadamente os degraus um a um enquanto me interrogo sobre como raios vou pagar a renda do próximo mês.
Preciso de um novo emprego – e já. Durante algum tempo, tive um trabalho a tempo parcial como empregada de bar, do qual estupidamente desisti porque tomar conta da Olive pagava muito melhor e o planeamento de última hora dificultava a conciliação com o segundo emprego. E não é como se fosse fácil para alguém como eu arranjar outro trabalho. Não com o meu historial.
– Belo tempo que temos tido – comenta o homem com a cicatriz sobre a sobrancelha esquerda, seguindo um passo atrás de mim nos degraus.
– Ahã – respondo. A última coisa que me apetece neste momento é falar sobre o tempo.
– Ouvi dizer que vai nevar outra vez na próxima semana – acrescenta.
– Oh?
– Sim. Estão previstos vinte centímetros. Um último viva antes da primavera.
Já nem consigo tentar fingir interesse. Ao chegarmos ao segundo andar, o homem sorri.
– Tenha um bom dia, então – diz.
– Igualmente – murmuro.
Enquanto desce o corredor rumo ao seu próprio apartamento, não posso deixar de pensar no que me disse quando O deixei entrar.
Como sabia que eu moro no Terceiro C?
Faço um esgar e subo um pouco mais depressa os degraus até ao meu apartamento. Mais uma vez, tenho as chaves a postos e, mal entro, fecho a porta atrás de mim, rodo a chave na fechadura e corro o ferrolho. Provavelmente, estou a dar demasiada importância ao comentário do homem, mas todo o cuidado é pouco. Sobretudo quando se vive no sul do Bronx.
O meu estômago ronca, mas, mais ainda do que por comida, anseio por um banho quente. Certifico-me de que as persianas estão corridas antes de me despir e saltar para o duche. Sei por experiência própria que há um minúsculo intervalo entre a água sair a ferver ou gelada. Desde que vivo aqui, tornei-me especialista em ajustar a temperatura. Mas pode subir ou descer vinte graus numa fração de segundo, por isso não demoro muito tempo. Preciso só de lavar alguma da sujidade do meu corpo. Ao fim de um dia a andar pela cidade, fica sempre coberto por uma camada de pó preto. Odeio pensar no aspecto que os meus pulmões terão.
Não posso acreditar que perdi aquele emprego. Amber apoiava-se tanto em mim que pensava estar segura pelo menos até a Olive ir para o jardim de infância, talvez mais tempo. Quase começava a sentir-me confortável, como se tivesse um emprego estável e um rendimento com que podia contar.
Agora, tenho de procurar outra coisa. Talvez múltiplos outros empregos para substituir aquele. E não é tão fácil para mim como para a maioria das pessoas. Não posso propriamente pôr um anúncio nas aplicações populares de cuidados infantis, pois todas exigem uma verificação de antecedentes. E, assim que isso acontecesse, quaisquer perspetivas de emprego deixariam de estar em cima da mesa. Ninguém quer alguém como eu a trabalhar em sua casa.
De momento, tenho uma certa falta de referências. Porque, durante algum tempo, os trabalhos de limpeza que eu fazia não eram propriamente só de limpeza. Costumava fazer outro serviço para várias das famílias para quem limpava. Mas já não faço isso. Há anos que não o faço.
Bem, não adianta remoer no passado. Não quando o futuro parece tão sombrio.
A temperatura do duche desce bruscamente e eu solto um grito involuntário. Estendo a mão para a torneira e fecho a água. Consegui uns bons dez minutos. Melhor do que estava à espera.