Ah Soh fungou, desdenhosa, e não se mexeu. MacStruan, ali perto, ordenou que ela começasse a trabalhar e apontou para o cais da companhia, no outro lado do passeio, onde empregados já guardavam caixas com documentos, fuzis e mercadorias diversas, enquanto Vargas e outros suavam para levar mais pacotes até lá. MacStruan decidira correr o risco de deixar dinheiro, lingotes e alguns documentos no cofre de ferro.
— Ah Soh, sua rameira sem mãe! — gritou ele, num cantonês perfeito. — Leve as coisas da
Ela obedeceu no mesmo instante e MacStruan acrescentou, rindo:
— Angelique, teremos um aviso com bastante antecedência. Pode ficar aí até eu chamá-la.
— Obrigada, Albert.
Ela viu Gornt levantar os olhos, do prédio ao lado. Ele acenou. Angelique respondeu ao aceno. Não sentia mais medo agora. Albert a avisaria a tempo, a segurança a aguardava no outro lado da rua ou nos barcos que começavam a se concentrar perto da praia. Não havia mais qualquer preocupação em sua mente. Já decidira como cuidar de André, Skye e a mulher de Hong Kong. E de Gornt amanhã. Sabia o que fazer. Cantarolando Mozart, ela pegou uma escova, sentou-se diante do espelho, a fim de se fazer mais apresentável para todos. Era como nos velhos tempos. Agora, o que vou vestir? O que seria melhor?
Raiko seguiu o corpulento servo pelas ruínas de sua estalagem. Ele segurava um lampião a óleo e avançava com extremo cuidado, contornando as brasas que ainda luziam intensamente, uma advertência na escuridão, atiçadas pelo ar quente e acre. Ela tinha o rosto enegrecido, os cabelos impregnados de cinza e poeira, o quimono chamuscado, todo rasgado. Ambos usavam máscaras contra a fumaça, mas mesmo assim tossiam e espirravam de vez em quando.
— Vá mais para a esquerda — balbuciou Raiko, a garganta ressequida, continuando a inspeção.
Podiam ver apenas os suportes de pedras, formando quadrados perfeitos, por cima das cinzas, indicando os lugares em que antes havia habitações.
— Pois não, ama.
E eles seguiram em frente.
Acima do barulho do vento, podiam ouvir vagamente outras pessoas chamando, gritos ocasionais de dor e choro, sinos de incêndio distantes, na aldeia e na colônia, que também ardiam. Raiko superara o pânico inicial. Incêndios acontecem. Eram obra dos deuses. Não importa, estou viva. Amanhã descobrirei o que causou o incêndio, se foi mesmo uma explosão, como alguns alegam, embora na confusão este vento terrível possa enganar os ouvidos, e o barulho possa muito bem ter sido causado por um pote de óleo mal colocado caindo num fogo da cozinha e explodindo, assim o incêndio se iniciando. A casa das Três Carpas desapareceu. Assim como todas as outras ou quase todas. Mas não estou arruinada, ainda não.
Algumas cortesãs e criadas, várias chorando, surgiram da noite, umas poucas com queimaduras. Raiko reconheceu as mulheres do Dragão Verde. Não havia nenhuma das suas ali.
— Parem de chorar! — ordenou ela. — Podem ir para a casa das Dezesseis Orquídeas... todas estão se reunindo ali. Não foi muito afetada e há lugar para dormir, comida e bebida para todas. Onde está Chio-san?
Era a
— Não a vimos — disse uma delas, entre lágrimas. — Eu estava com um cliente. Mal tive tempo de sair correndo com ele e ir para o abrigo subterrâneo.
— Ótimo. E agora tratem de ir. Sigam por este caminho e tomem cuidado. Raiko sentiu-se satisfeita ao recordar que, por ocasião da construção da Yoshiwara, há pouco mais de dois anos, com as
Ela acabara de inspecionar seu abrigo. Os degraus desciam para a porta revestida de ferro. O interior se encontrava impecável. Todos os bens valiosos se encontravam ali, todos os contratos, provas de dívidas, empréstimos feitos à Gyokoyama, declarações bancárias, vales, as melhores roupas de cama e mesa, os melhores quimonos... tanto os seus quanto os de suas damas, tão bons quanto novos. Desde o início, fora sua política que as melhores roupas não deveriam ser usadas à noite, mas guardadas no abrigo, o que quase sempre acarretava resmungos e protestos pelo trabalho extra. Não haverá resmungos esta madrugada, pensou ela.