Ralf lhe estendeu o cartão de sua agente em Barcelona. - Telefone para ela daqui a seis meses, se ainda estiver na Europa. "As faces de Genève", gente famosa e gente anônima, será exposta pela primeira ve z em uma galeria em Berlim. Depois irá fazer um tour pela Europa. Maria lembrou-se do calendário, dos noventa dias que faltavam, de tudo que qualquer relação, qualquer laço, poderia significar de perigoso. "O que é mais importante nesta vida? Viver ou fingir que vivi? Arriscar agora, dizer que foi a tarde mais bela que passei nesta cidade? Agradecer porque ele me escutou sem críticas e sem comentários? Ou simplesmente vestir a couraça da mulher com força de vontade, com luz especial, e partir sem nenhum comentário?" Enquanto andavam pelo Caminho de Santiago, e à medida que escutava a si mesma contando sua vida, ela fora uma mulher feliz. Podia contentar-se com isso - já era um grande presente da vida.
- Vou procurá- la - disse Ralf Hart.
- Não faça isso. Viajo em breve para o Brasil. Não temos mais nada a acrescentar um ao outro.
- Vou procurá- la como um cliente.
- Isso será uma humilhação para mim.
- Vou procurá- la para que me salve.
Ele fizera aquele comentário no início, sobre o desinteresse por sexo. Quis dizer que sentia a mesma coisa, mas controlou-se - tinha ido longe demais em suas negativas, era mais inteligente ficar quieta.
Que coisa patética. Mais uma vez estava ali com um menino, que desta vez não lhe pedia um lápis, mas um pouco de companhia. Olho u para o seu passado e, pela primeira vez, perdoou a si mesma: a culpa não fora dela, mas do garoto inseguro, que havia desistido na primeira tentativa. Eram crianças, e as crianças agem assim - nem ela nem o menino estavam errados, e isso lhe deu um grande alívio, sentiu-se melhor, não traíra sua primeira oportunidade na vida. Todos fazem isso, é parte da iniciação do ser humano em busca de sua outra parte, coisas assim acontecem. Entretanto, agora a situação era diferente. Por melhores que fossem as razões (vou para o Brasil, trabalho em uma boate, não tivemos tempo de nos conhecer bem, não estou interessada em sexo, não quero saber de amor, preciso aprender a administrar fazendas, não entendo nada de pintura, vivemos em mundos diferentes), a vida lhe fazia um desafio. Não era mais criança, precisava escolher.
Preferiu não responder. Apertou a mão do pintor, como era o costume naquela terra, e partiu em direção a sua casa. Se ele fosse mesmo o homem que gostaria que fosse, não se deixaria intimidar por seu silêncio.
Trecho do diário de Maria, escrito naquele mesmo dia: Hoje, enquanto andávamos em volta do lago, por este estranho Caminho de Santiago, o homem que estava comigo - um pintor, uma vida diferente da manha jogou uma pedrinha
na água. No lugar onde a pedra caiu, apareceram pequenos círculos que foram se
ampliando, expandindo, até atingirem um pato que passava por ali casualmente, e nada tinha a ver com a pedra. Em vez de ficar assustado com a onda inesperada, ele resolveu brincar com ela.
Algumas horas antes desta cena, eu entrei em um café, escutei uma voz, e foi como se Deus tivesse atirado uma pedrinha naquele lugar. As ondas de energia tocaram a mim e a um homem que estava em um canto, pintando um quadro. Ele sentiu a vibração da pedra, eu também. E agora?
O pintor sabe quando encontra um modelo. O músico sabe quando o seu instrumento está afinado. Aqui, neste meu diário, eu tenho consciência de que certas frases não são escritas por mim, mas por uma mulher cheia de "luz"; que sou e me recuso a aceitar. Posso continuar assam. Mas posso também, como 0 patinho no lago, divertir- me e alegrar- me com a marola que chegou de repente e desequilibrou a água. Existe um nome para esta pedra: paixão. Ela pode descrever a beleza de um encontro fulminante entre duas pessoas, mas não se limita a isso. Está na excitação do inesperado, na vontade de fazer alguma coisa com fervor, na certeza de que se vai conseguir realizar um sonho. A paixão nos dá sinais que nos guiam a vida - e cabe a mira saber decifrar estes sanais.
Gostaria de acreditar que estou apaixonada. Por alguém que não conheço, e que não estava nos meus planos. Todos estes meses de autocontrole, de recusado amor, resultaram exatamente no oposto: deixar- me levar pela primeira pessoa que me deu uma atenção diferente.
Ainda bem que não peguei seu telefone, que não sei onde mora, que posso perdê-lo sem me culpar por ter perdido a oportunidade. E se for esse o caso, mesmo que já o tenha perdido, eu ganhei um dia feliz na minha vida. Considerando o mundo como ele é, um dia feliz é quase um milagre.