Pelo visto, o encontro agora caminha da maneira tristemente prevista: o homem tenta seduzir a mulher.
- Por favor, mais dois drinks de anis - pediu, sem dar importância ao comentário de Maria.
O que tinha para fazer? Ler um aborrecido livro sobre administração de fazendas. Caminhar, como já fizera centenas de vezes, pela margem do lago. Ou conversar com alguém que vira nela uma luz que desconhecia, justamente na data marcada no calendário para o começo do fim de sua "experiência". - O que você faz?
Esta era a pergunta que não queria ouvir, que a fizera evitar muitos encontros quando, por uma razão ou por outra, alguém se aproximava dela (o que acontecia raramente na Suíça, dada a natureza discreta dos seus habitantes). Qual seria a resposta possível? - Trabalho em uma boate.
Pronto. Um enorme peso saiu de suas costas - e ficou contente por tudo que aprendera desde que chegara na Suíça; perguntar (O que são os curdos? O que é o Caminho de Santiago?) e responder (trabalho em uma boate) sem importar-se com o que estão pensando.
- Acho que já a vi antes.
Maria sentiu que ele queria ir mais longe, e saboreou sua pequena vitória; o pintor que minutos atrás lhe dava ordens, parecendo absolutamente seguro do que queria, agora voltava a ser um homem como todos os outros, inseguro diante de uma mulher que nã o conhece.
- E esses livros?
Ela mostrou-os. Administração de fazendas. O homem pareceu ficar mais inseguro ainda.
- Trabalha com sexo?
Ele tinha arriscado. Será que ela se vestia como uma prostituta? De qualquer maneira, precisava ganhar tempo. Estava se examinando, aquilo começava a ser um jogo interessante, não tinha absolutamente nada a perder. - Por que os homens só pensam nisso?
Ele tornou a colocar os livros na bolsa. - Sexo e administração de fazendas. Duas coisas muito aborrecidas. O quê? De repente, ela se sentia desafiada. Como podia falar tão mal de sua profissão? Bem, ele ainda não sabia em que ela trabalhava, estava apenas arriscando um palpite, mas não podia deixá-lo sem resposta. - Pois eu penso que não há nada mais aborrecido do que a pintur a. Uma coisa parada, um movimento que foi interrompido, uma fotografia que jamais é fiel ao original. Uma coisa morta, pela qual ninguém se interessa mais, a não ser os pintores, gente que se julga importante, culta, e que não evoluiu como o resto do mundo. Já ouviu falar de Joan Miró? Eu nunca ouvi, a não ser por um árabe em um restaurante, e isso não mudou absolutamente nada em minha vida.
Não sabia se tinha ido longe demais, porque os drinks chegaram e a conversa foi interrompida. Os dois ficaram sem dizer palavra por algum tempo. Maria pensou que já
estava na hora de ir, e talvez Ralf Hart tivesse pensado a mesma coisa. Mas ali ainda
estavam dois copos cheios daquela bebida horrorosa, e isso era um pretexto para continuarem juntos.
- Por que o livro sobre fazendas?
- O que você quer dizer?
- Já estive na Rue de Berne. Depois que você me disse onde trabalhava, me lembrei que já a vi antes: naquela boate cara. Entretanto, enquanto a pintava, não me dei conta: sua "luz" estava muito forte.
Maria sentiu que o chão fugia dos seus pés. Pela primeira vez sentiu vergonha do que fazia, embora não tivesse a menor razão para isso, trabalhava para sustentar a si mesma e a sua família. Ele é quem devia sentir vergonha de ir à Rue de Berne; de um momento para o outro, todo aquele possível encanto havia desaparecido. - Escute, Sr. Hart, embora eu seja brasileira, moro há nove meses na Suíça. E aprendi que os suíços são discretos porque vivem em um país muito pequeno, quase todos se conhecem, como acabamos de ver, razão pe la qual ninguém pergunta pela vida do outro. Seu comentário foi impróprio e muito indelicado, mas se seu objetivo foi me humilhar para sentir-se mais à vontade, o senhor perdeu seu tempo. Obrigada pelo licor de anis, que é horroroso, mas que vou tomar até o final. E vou fumar um cigarro depois. E finalmente, vou levantar e irei embora. Mas o senhor pode sair neste momento, já que não é bom para pintores famosos sentarem à mesma mesa com uma prostituta. Porque é isso que sou, sabe? Uma prostituta. Sem nenhuma culpa, dos pés à cabeça, de alto a baixo, uma prostituta. E esta é a minha virtude: não enganar nem a mim, nem ao senhor. Porque não vale a pena, o senhor não merece uma mentira. Imagine se o químico famoso, ali no outro lado do restaurante, descobrir quem sou?
Ela começou a levantar a voz.
- Uma prostituta! E sabe o que mais? Isso me deixa livre, saber que vou embora desta maldita terra daqui a exatos noventa dias, cheia de dinheiro, muito mais culta, capaz de escolher um bom vinho, com a bolsa recheada de fotos que tirei na neve, e entendendo a natureza dos homens!