Tirar dois lenços, cuidadosamente dobrados, lavados, e enxaguados várias vezes, de modo a não deixar nenhum traço de perfume ou de sabão. Aproximar-se dele e pedir que vende seus olhos. Ele hesita por um momento, e comenta sobre alguns dos infernos por que já passou. Ela diz que não se trata disso, que precisa apenas da escuridão total, que agora é sua vez de ensinar-lhe algo, como ontem ele lhe havia ensinado sobre a dor. Ele se entrega, coloca a venda. Ela faz o mesmo; agora já não há fresta de luz, estão no verdadeiro escuro, um precisa da mão do outro para chegar até a cama. Não, não devemos nos deitar. Vamos nos sentar como sempre fizemos, frente a frente, só que um pouco mais perto, de modo que meus joelhos toquem os seus joelhos. Sempre quis fazer isso. Mas nunca tinha o que precisava: tempo. Nem com o seu primeiro namorado, nem com o homem que a penetrou pela primeira vez. Nem com o árabe que pagou mil francos, talvez esperando mais do que ela foi capaz de dar embora mil francos não bastassem para ela comprar o que desejava. Nem com os muitos homens que passaram pelo seu corpo, entraram e saíram de suas pernas, às vezes pensando apenas em si mesmos, às vezes pensando também nela, às vezes com sonhos românticos, às vezes apenas com o instinto de repetir algo porque lhes disseram que é assim que um homem age, e se não agir assim, não é homem.
Lembra-se do seu diário. Está farta, quer que as semanas que faltam passem rapidamente, e por isso entrega-se a este homem, porque ali está a luz de seu próprio amor escondido. O pecado original não foi a maçã que Eva comeu, foi achar que Adão precisava compartilhar exatamente o que ela havia experimentado. Eva tinha medo de seguir o seu caminho sem a ajuda de alguém, então quis dividir o que sentia. Certas coisas não se dividem. Não devemos ter medo dos oceanos em que mergulhamos por nossa livre vontade; o medo atrapalha o jogo de todo mundo. O homem está passando por infernos para entender isso. Amemos uns aos outros, mas não tentemos possuir uns aos outros.
Eu amo este homem que está diante de mim, porque eu não o possuo, e ele não me possui. Somos livres em nossa entrega, preciso repetir isso dezenas, centenas, milhões de vezes, até que termine por acreditar em minhas próprias palavras. Pensa um pouco nas outras prostitutas que trabalham com ela. Pensa na sua mãe, nas suas amigas. Todas acreditam que o homem deseja apenas onze minutos por dia, e pagam um dinheirão por isso. Não, não é assim; o homem também é uma mulher; quer encontrar alguém, descobrir um sentido para sua vida. Será que sua mãe se comporta como ela, e finge ter orgasmo com seu pai? Ou será que, no interior do Brasil, ainda é proibido mostrar que uma mulher tem prazer no sexo? Sabe tão pouco da vida, do amor, e agora - com os olhos vendados e todo 0 tempo do
mundo - vai descobrindo a origem de tudo, e tudo começa onde e como ela gostaria de ter
começado.
O toque. Esquece as prostitutas, os clientes, sua mãe e seu pai, agora está na escuridão total. Passou a tarde inteira procurando o que poderia dar para um homem que lhe devolvia a dignidade, lhe fazia entender que a busca da alegria é mais importante do que a necessidade da dor.
Eu gostaria de lhe dar a felicidade de ensinar- me algo novo, como ontem me ensinou sobre sofrimento, prostitutas de rua, prostitutas sagradas. Vi que é feliz quando está me fazendo aprender algo, então que me faça aprender, que me guie. Eu gostaria de saber como se chega até o corpo, antes de se chegar na alma, na penetração, no orgasmo. Estende o braço em sua direção, e pede que ele faça o mesmo. Sussurra poucas palavras, dizendo que aquela noite, naquele lugar de ninguém, gostaria que ele descobrisse sua pele, a fronteira entre ela e o mundo. Pede que a toque, que a sinta com suas mãos, porque os corpos se entendem, embora nem sempre as almas estejam de acordo. Ele começa a tocá- la, ela também o toca, e ambos, como se tivessem combinado tudo antes, evitam as partes do corpo em que a energia sexual aflora mais rapidamente. Os dedos tocam o seu rosto, ela sente um pouco o cheiro de tinta, um cheiro que sempre permanecerá ali, por mais que ele lave aquelas mãos milhares, milhões de vezes, que estava ali quando nasceu, quando ele deve ter visto a primeira árvore, a primeira casa, e ter decidido desenhá - la em seus sonhos. Também ele deve estar sentindo algum cheiro em sua mão, mas ela não sabe o que é, e não quer perguntar, porque neste momento tudo é corpo, o resto é silêncio.