Foi até a biblioteca devolver o manual sobre administração de fazendas. Não tinha entendido nada, mas o livro lhe recordara, nos momentos em que pensava ter perdido o controle de si mesma e de seu destino, qual era o objetivo de sua vida. Tinha sido um companheiro silencioso, com sua capa amarela sem desenhos, uma série de gráficos, mas, sobretudo, tinha sido um farol nas noites escuras das semanas mais recentes. Sempre fazendo planos para o futuro. E sempre sendo surpreendida pelo presente, dizia a si mesma. Pensava em como havia descoberto a si mesma através da independência, do desespero, do amor, da dor, para logo encontrar-se com o amor de novo - e gostaria que as coisas terminassem por ali.
O mais curioso disso tudo é que, enquanto algumas de suas companheiras de trabalho falavam das virtudes e do êxtase por estar com certos homens na cama, ela jamais tinha se descoberto melhor ou pior através do sexo. Não resolvera seu problema, era incapaz de ter um orgasmo com a penetração, e vulgarizara tanto o ato sexual que talvez não conseguisse nunca mais encontrar no "abraço do reencontro" -como Ralf Hart o chamava - o fogo e a alegria que buscava.
Ou talvez (como costumava pensar de vez em quando) sem amor fosse impossível ter qualquer prazer na cama, como diziam as mães, os pais, os livros românticos. A bibliotecária, normalmente séria (e sua única amiga, embora jamais lhe tivesse dito isso), estava de bom humor. Atendeu-a na hora do almoço e convidou-a para compartilhar um sanduíche. Maria agradeceu e disse que tinha acabado de almoçar. - Você demorou muito para ler.
- Não entendi nada.
- Você se lembra do que me pediu uma vez? Não, não lembrava, mas depois que viu o sorriso malicioso no ar da mulher à sua frente, imaginou o que teria sido. Sexo. - Sabe, desde que você veio aqui procurando por este tipo de assunto, eu resolvi fazer um levantamento do que tínhamos. Não era muito, e como precisamos educar nossa juventude, eu encomendei alguns. Assim, não precisam aprender da pior maneira possível, com prostitutas, por exemplo.
A bibliotecária apontou para uma pilha de livros em um canto, todos cuidadosamente encapados com papel pardo.
- Ainda não tive tempo de classificá-los, mas andei dando uma olhada e fiquei horrorizada com o que descobri.
Bem, já podia adivinhar o que a mulher diria: posições constrangedoras, sadomasoquismo, e coisas deste tipo. Melhor dizer que tinha que voltar a trabalhar (não sabia onde tinha dito que trabalhava, se em um banco, ou em uma loja - mentira dava muito trabalho, ela se esquecia sempre).
Agradeceu, fez sinal de que ia sair, mas a outra comentou: - Você também ia ficar horrorizada. Por exemplo: sabia que o clitóris é uma invenção recente?
Invenção? Recente? Ainda esta semana alguém tinha tocado no seu, como se sempre
estivesse ali, e como se aquelas mãos conhecessem bem o terreno que estava sendo explorado - apesar da escuridão completa. - Foi oficialmente aceito em 1559, depois que um médico, Realdo Columbo, publicou um livro chamado De re anatomica. Durante mil e quinhentos anos da era cristã, ele foi oficialmente ignorado. Columbo o descreve, em seu livro, como "uma coisa bonita e útil", você acredita?
As duas riram.
- Dois anos depois, em 1561, outro médico, Gabrielle Fallopio, disse que a "descoberta" tinha sido dele. Veja só! Dois homens, italianos, claro, que entendem do assunto, discutindo quem havia oficialmente colocado o clitóris na história do mundo! Aquela conversa era interessante, mas Maria não queria pensar no assunto, principalmente porque sentia de novo 0 líquido escorrendo, e o sexo ficando molhado -só de lembrar do toque, das vendas, das mãos que passeavam no seu corpo. Não, não estava morta para o sexo, aquele homem a havia resgatado de alguma maneira. Que bom continuar viva.
A bibliotecária, porém, estava entusiasmada: - Mesmo depois de "descoberto", continuou a ser desrespeitado - disse ela, parecendo uma perita em clitoriologia, ou seja lá qual fosse o nome desta ciência. -As mutilações que lemos hoje nos jornais, praticadas por certas tribos da África que ainda tiram da mulher o direito ao prazer, não são nenhuma novidade. Aqui mesmo na Europa, no século XIX, ainda se faziam operações para eliminar o clitóris, acreditando que naquela pequena e insignificante parte da anatomia feminina estava toda a fonte de histeria, epilepsia, tendência ao adultério e incapacidade de ter filhos. Maria estendeu a mão para despedir -se, mas a bibliotecária não dava sinais de cansaço.
- Pior ainda, nosso querido Freud, o descobridor da psicanálise, dizia que o orgasmo feminino, em uma mulher normal, deve mover-se do clitóris para a vagina. Seus mais fiéis seguidores, desenvolvendo esta tese, passaram a afirmar que o fato de manter o prazer sexual concentrado no clitóris era um sinal de infantilidade, ou, o que é pior, de bissexualidade.