da casa, contas a pagar, tolerância com as escapadas do marido, viagens nas férias durante as quais ficavam mais preocupadas com os filhos do que consigo mesmas, cumplicidade - ou até mesmo amor, mas nada de sexo.
Devia ter sido mais aberta com a jovem brasileira, que lhe parecia uma moça inocente, com idade para ser sua filha, e ainda incapaz de compreender o mundo direito. Uma imigrante, vivendo longe da sua terra, dando duro em um trabalho sem graça, esperando um homem com quem pudesse casar, fingir alguns orgasmos, encontrar a segurança, reproduzir esta misteriosa raça humana, e logo esquecer estas coisas chamadas orgasmo, clitóris, ponto G (descoberto apenas no século XX!!!). Ser uma boa esposa, uma boa mãe, cuidar para que nada faltasse em casa, masturbar-se escondido de vez em quando, pensando no homem que cruzara com ela na rua e a olhara com desejo. Manter as aparências - por que será que o mundo estava tão preocupado com as aparências? Por isso não respondera à pergunta:
"Você já teve alguém fora do casamento?" Estas coisas morrem com a gente, pensou. Seu marido sempre fora o homem de sua vida, embora o sexo fosse coisa do passado remoto. Era um excelente companheiro, honesto, generoso, bem- humorado, lutava para sustentar a família, e procurava deixar felizes todos aqueles que estavam sob sua responsabilidade. O homem ideal, com que todas as mulheres sonham, e justamente por isso sentia-se tão mal em pensar que um dia desejara - e estivera - com outro homem.
Lembrava-se de como o havia encontrado. Estava voltando da cidadezinha de Davos, nas montanhas, quando uma avalanche de neve interrompeu por algumas horas a circulação dos trens. Telefonou, para que ninguém ficasse preocupado; comprou algumas revistas e preparou-se para uma longa espera na estação. Foi quando viu um homem ao seu lado, com uma mochila e um saco de dormir. Tinha os cabelos grisalhos, a pele queimada de sol, era o único que parecia não estar preocupado com a ausência do trem; muito pelo contrário, sorria e olhava em volta, procurando alguém para conversar. Heidi abriu uma das revistas mas - ah, vida misteriosa! -seus olhos cruzaram rapidamente com os dele, e não conseguiu desviar rápido o bastante para evitar que se aproximasse.
Antes que ela pudesse - educadamente - dizer que realmente precisava terminar um artigo importante, ele começou a falar. Disse que era um escritor, estava voltando de um encontro na cidade, e que o atraso dos trens faria com que perdesse o vôo de volta para o seu país. Quando chegassem a Genève, podia ajudá- lo a encontrar um hotel? Heidi o olhava: como é que alguém podia estar tão bemhumorado depois de perder um vôo e ter que ficar esperando numa desconfortável estação de trem até que as coisas se resolvessem?
Mas o homem começou a conversar como se fossem velhos amigos. Contou sobre suas viagens, sobre o mistério da criação literária e, para seu espanto e horror, sobre todas as mulheres que havia amado e encontrado ao longo de sua vida. Heidi apenas fazia que "sim" com a cabeça, e ele continuava. Vez por outra, pedia desculpas por estar falando muito e lhe pedia que contasse um pouco de si mesma, mas tudo que ela tinha para dizer era "sou uma pessoa comum, sem nada de extraordinário". De repente, ela viu-se torcendo para que o trem não chegasse nunca, aquela conversa era muito envolvente, estava descobrindo coisas que só haviam entrado em seu mundo através dos romances de ficção. E como jamais tornaria a vê-lo, tomou coragem (mais tarde não saberia explicar por quê) e começou a perguntar sobre temas que lhe interessavam.
Vivia um momento difícil em seu casamento, o marido reclamava muito a sua presença, e
Heidi quis saber o que podia fazer para deixá- lo feliz. O homem deu algumas explicações interessantes, contou uma história, mas não parecia muito contente em ter que falar do marido.
"Você é uma mulher muito interessante", disse, usando uma frase que fazia muitos anos ela não escutava.
Heidi não soube como reagir, ele percebeu seu embaraço, e logo começou a falar sobre desertos, montanhas, cidades perdidas, e mulheres cobertas com véu, ou de cintura desnuda, guerreiros, piratas e sábios.