E foi assim. Foi o fim. De forma assim tão simples, acabara. Portanto, quando alguns meses depois o Brock me convidou para sair, não havia razões para dizer não.
Com o Enzo, a minha vida era uma espécie de aventura excitante, mas agora estou a caminho da vida perfeita e normal que nunca pensei que fosse possível para mim. O Brock não conhece ninguém capaz de desencantar um passaporte falso em vinte e quatro horas – imagino que, se lhe pedisse algo assim, olharia para mim em absoluto choque.
O Enzo conhecia um tipo para tudo. Era praticamente o seu lema quando eu lhe pedia ajuda. Conheço um tipo.
E, agora, estou a fazer a tarefa mais normal que existe. Ir às compras. Ainda que, em abono da verdade, não haja nada de normal na lista de produtos que Douglas me encarregou de comprar. Ao consultar os primeiros artigos na lista que me enviou esta manhã por mensagem de texto, retraio-me ante a caça ao tesouro em que me está a enviar:
Juro por Deus que deve estar a inventar estes nomes.
Apertando a lista de compras, agarro no meu casaco e começo a descer as escadas. Não faço ideia de quanto tempo vou levar a encontrar um cucamelão, ou a descobrir sequer do que se trata, por isso é melhor dar-me algum tempo.
Ao chegar ao patamar do rés-do-chão, quase colido de frente com aquele homem que vive por baixo de mim. Mesmo por baixo de mim. O da cicatriz sobre a sobrancelha esquerda. Retraio-me ao vê-lo.
– Ei – sorri. Tem um dente de ouro no lugar do segundo incisivo esquerdo que me faz lembrar Joe Pesei em
– Sim – esboço um sorriso apologético. – Desculpe.
– Sem problemas. – O seu sorriso expande-se. – Sou o Xavier, a propósito.
– Prazer em conhecê-lo – respondo, evitando claramente dar-lhe o meu primeiro nome.
– Millie, não é?
Bem, essa estratégia falhou. Sinto um desconforto no estômago – este homem sabe exatamente onde vivo e, de algum modo, sabe o meu primeiro nome. Provavelmente o apelido também. Claro que facilmente o pode ter deduzido das nossas caixas do correio.
Continuo a ter a sensação intermitente de que estou a ser observada. Há alturas em que penso que talvez seja tudo da minha cabeça, mas neste momento não tenho assim tanta certeza. O Xavier sabe demasiado a meu respeito. Será possível que...?
Céus, não posso pensar nessa possibilidade agora. Já é suficientemente assustador andar pelas ruas do sul do Bronx sem me preocupar com a possibilidade de o sujeito que vive por baixo de mim me andar a perseguir. Talvez devesse aceitar a oferta do Brock de vivermos juntos. Provavelmente, o Xavier deixar-me-á em paz se eu me mudar para o Upper West Side. E, se não o fizer, terá de se haver com o porteiro de fatinho e chapéu. Ninguém passa por um desses porteiros. Acho que conseguem usar aqueles chapéus como bumerangues, se for preciso.
– O que vai fazer hoje? – pergunta-me o Xavier.
Dirijo-me à saída.
– Apenas umas compras.
– Ah, sim? Quer companhia?
– Não, obrigada.
O Xavier parece ter mais a dizer, mas não lhe dou oportunidade. Passo por ele e saio porta fora. Quer acabe ou não com o Brock, poderei ter de me mudar num futuro próximo. Não me sinto confortável perto deste homem. Tenho o mau pressentimento de que é o tipo de indivíduo que não sabe aceitar um não como resposta.
11
Ao chegar ao apartamento dos Garrick, tenho nos braços quatro sacos a transbordar de compras. Estava a sair-me bem a equilibrá-los até chegar ao último quarteirão, em que estive à beira de deixar cair tudo. Mas, pela graça de Deus, aqui estou, cucamelão incluído. (Existem mesmo e consegui encontrá-los numa mercearia espanhola.)
Felizmente, não tenho de me atrapalhar com o puxador, pois as portas do elevador abrem-se e posso entrar diretamente. Esperava conseguir chegar à cozinha de uma assentada, mas, a meio do caminho, tenho de largar todos os sacos no chão e fazer uma pausa. Se deixasse cair o cucamelão e o partisse, acho que teria de me sentar no chão e chorar.
Enquanto estou na sala de estar, a tentar decifrar a melhor estratégia para levar as compras para a cozinha, oiço um som.
Gritos.
Bem, gritos abafados. Não consigo propriamente ouvir as palavras, mas parece que alguém no quarto de cima está realmente a descarregar. Deixando as compras para trás, chego-me mais perto da escadaria para tentar ouvir o que se passa. E é então que oiço o estrondo.
Parece vidro a partir.
Levo a mão ao corrimão da escadaria, pronta a subir os degraus para me certificar de que está tudo bem. Mas, antes de dar sequer um passo, uma porta bate no andar de cima. Em seguida, passos cada vez mais altos fazem-se ouvir nas escadas, e eu recuo.