– Millie. – Douglas para bruscamente ao fundo das escadas. Veste uma camisa formal e tem o rosto corado, como se a sua gravata estivesse demasiado apertada, apesar de lhe pender frouxa à volta do pescoço. Na mão direita, segura um saco para presentes. – O que faz aqui?
– Eu... – Olho para os quatro sacos de compras. – Trouxe as compras, la guardá-las.
Semicerra os olhos.
– Então por que não está na cozinha?
Esboço-lhe um sorriso tímido.
– Ouvi um estrondo. Receei que...
Ao dizer as palavras, vejo um rasgão no tecido da sua elegante camisa formal. E não como se uma costura se tivesse soltado. Tem um violento corte mesmo por cima do bolso do peito.
– Está tudo bem – diz com rispidez. – Eu trato das compras. Pode ir.
– Está bem...
Não consigo desviar os olhos do rasgão na sua camisa. Como terá aquilo ocorrido? O homem trabalha como diretor-executivo – não há trabalhos pesados envolvidos. Poderá ter acontecido agora mesmo, no quarto de hóspedes?
– Além do mais... – Estende o saco para presentes na sua mão direita. – Preciso que devolva isto por mim. A Wendy não o quis.
Aceito o pequeno saco cor-de-rosa. No interior, capto um vislumbre de tecido sedoso.
– Sim, com certeza. O talão está aqui dentro?
– Não, era um presente.
– Eu... não creio que o possa devolver sem talão. De onde veio?
Douglas cerra os dentes.
– Não sei. Foi a minha assistente que escolheu. Envio-
lhe uma cópia do talão por e-mail.
– Se foi a sua assistente que escolheu, não seria mais fácil ser ela a devolver?
Inclina a cabeça na minha direção.
– Desculpe, mas não é o seu trabalho fazer recados para mim?
Puxo a cabeça para trás. É a primeira vez desde que comecei a trabalhar aqui que Douglas se dirige a mim com tamanho desrespeito. Sempre achei que parecia um homem relativamente simpático, ainda que stressado e distraído. Agora, percebo que tem um outro lado.
Mas não temos todos?
Douglas Garrick olha-me fixamente. Está à espera que eu saia, mas cada fibra do meu ser me diz que devia ficar. Que devia verificar o andar de cima e certificar-me de que tudo está bem.
Mas, então, Douglas interpõe-se entre mim e a escadaria. Cruza os braços sobre o peito e arqueia-me as suas espessas sobrancelhas. Não vou passar por este homem e, mesmo que o fizesse, tenho um pressentimento que, se batesse à porta do quarto de hóspedes, Wendy Garrick me asseguraria que está ótima.
Portanto, no fim de contas, não há nada que eu possa fazer a não ser partir.
12
Ao percorrer o trajeto de cinco quarteirões entre a estação de metro e o meu prédio, noto uma vez mais aquela sensação de formigueiro na nuca. Quando a sinto em Manhattan, na sofisticada zona onde trabalho e onde o meu namorado vive, parece-me que estou a ser paranoica. Mas agora, no sul do Bronx, quando o sol já desceu no céu, a paranoia é bom senso. Não me visto para chamar a atenção. Trago umas calças de ganga pelo menos um tamanho acima, umas Nike cinzentas que outrora costumavam ser brancas e um casaco que é mais volumoso do que moderno – de cor escura, para se misturar com a noite. Mas, ao mesmo tempo, sou nitidamente uma mulher. Mesmo com o gorro enfiado no cabelo louro e o meu feio casaco acolchoado, a maioria das pessoas identificar-me-ia como tal do fundo do quarteirão.
Acelero o passo, portanto. Além disso, trago uma lata de gás-pimenta no meu bolso. Tenho os dedos fechados em seu redor. Mas a sensação não desaparece até eu ter entrado no edifício e fechado a porta atrás de mim.
É essa a questão. Nunca tenho essa sensação de formigueiro quando estou no meu apartamento. Não a tenho quando estou a limpar a penthouse. Sinto-a apenas quando estou no exterior, em alturas em que podia realmente estar alguém a observar-me. O que me leva a pensar que a sensação é real.
Ou estou a enlouquecer. Também é uma possibilidade.
O Brock enviou-me uma mensagem a perguntar se eu
queria ir a sua casa esta noite e eu disse-lhe que não. Estou demasiado cansada.
Afasto da minha mente quaisquer pensamentos sobre o Brock enquanto tiro algumas cartas da minha caixa do correio – tudo contas. Como é possível eu ter tantas contas? Sinto que sobrevivo à base de praticamente nada. Em todo o caso, estou a enfiar as cartas na minha bolsa quando a fechadura roda na porta do prédio. Passado um segundo, surge uma corrente de ar frio e o homem da cicatriz sobre a sobrancelha esquerda abre caminho para o interior.
Xavier. Foi como disse que se chamava.
– Olá, Millie – diz, num tom demasiado alegre. – Como está?
– Bem – respondo rigidamente.
Rodo nos calcanhares e dirijo-me à escadaria, esperando que fique para trás a ver o seu próprio correio. Não tenho essa sorte. O Xavier corre atrás de mim, tentando acompanhar-me e pondo-se a meu lado.
– Tem planos para esta noite? – pergunta-me.
– Não – respondo, subindo apressadamente as escadas até ao segundo andar. Aí, poderei despedir-me do Xavier.
– Podia ir lá a casa – sugere. – Ver um filme.
– Estou ocupada.
– Não, não está. Ainda agora disse que não tinha planos para esta noite.
Cerro os dentes.