— Não, obrigado — respondeu Settry Pallidar. — Meu limite é dois ovos. Devo confessar que acho horrível a cozinha aqui. Disse que queria os meus ovos bem-passados, não moles, mas essa gente tem areia no lugar do cérebro. Na verdade, não consigo comer ovos se não estiverem numa torrada, no bom pão inglês. Não têm o mesmo gosto de outra forma. O que você acha que vai acontecer pelo que fizeram com Canterbury?
Marlowe hesitou. Estavam na sala de jantar da legação, sentados à vasta mesa de carvalho que podia alojar vinte pessoas, trazida da Inglaterra justamente para isso. A sala de canto era espaçosa e agradável, as janelas se achavam abertas para o jardim e o amanhecer. Três criados chineses de libré serviam os dois. Lugares postos para meia dúzia. Ovos fritos e bacon, em bandejas de prata, aquecidas por velas, galinha assada, presunto defumado frio, um pastelão de cogumelos, um pedaço de carne de boi, biscoitos duros, uma torta de maçãs secas. Cerveja branca e preta, chá.
— O ministro deve pedir reparações imediatas e que os assassinos sejam entregues. E, quando houver a demora inevitável, ele deve ordenar que a esquadra ataque Iedo.
— Melhor ainda seria desembarcar com toda força... temos tropas suficientes... ocupar a capital, remover o rei... como é mesmo que ele se chama?... ah, sim, xógum, designar nosso novo soberano nativo e transformar o Japão num protetorado. Ou ainda melhor, para eles, integrá-lo ao império.
Pallidar sentia-se exausto, pois ficara acordado durante a maior parte da noite. O uniforme estava desabotoado, mas penteara os cabelos e fizera a barba. Gesticulou para um dos criados.
— Chá, por favor.
O jovem chinês, impecavelmente vestido, compreendeu muito bem, mas fitou-o com uma expressão aturdida, para divertimento dos outros.
— O que foi mesmo que disse, senhor? Quer chá? Foi isso o que ouvi? Quer um chá?
— Ora, deixe para lá, pelo amor de Deus!
Pallidar levantou-se, com um ar de cansado, foi até o aparador com sua xícara, serviu-se de chá, enquanto todos os criados riam muito, mas por dentro, pelo descrédito do insolente demônio estrangeiro, e depois continuaram a escutar, na maior atenção, o que os dois diziam.
— É uma questão de poderio militar, meu caro. E posso lhe dizer, com toda franqueza, que o general ficará furioso pela perda de um granadeiro para um assassino nojento, vestido como Ali Babá. Vai querer vingança... todos nós vamos querer.
— Não sei de nada sobre um desembarque... a marinha, sem dúvida, pode abrir uma passagem para vocês com um bombardeio, mas não temos a menor idéia de quantos samurai
— Independentemente de quantos sejam, de sua força, sempre podemos derrotá-los, porque não passam de um bando de nativos atrasados. Claro que podemos vencê-los. Exatamente como fizemos na China. Não consigo entender por que não anexamos a China, e acabamos de uma vez com todos os problemas.
Todos os criados ouviram e entenderam, e todos juraram que quando o Reino Celestial possuísse canhões e navios, para se igualar aos canhões e navios dos bárbaros, haveriam de ajudar a esfregar os narizes daqueles invasores em sua própria bosta, ensinando-lhes uma lição que duraria mil gerações. Todos eles haviam sido escolhidos pelo ilustre Chen, Gordon Chen, o compradore da Casa Nobre.
— Não quer mais um pouco de ovo, senhor? — indagou o mais corajoso, com um sorriso em que exibia todos os dentes, estendendo a bandeja com os ovos moles sob o nariz de Pallidar. — Muito bons.
Pallidar empurrou a bandeja para longe, repugnado.
— Não, obrigado. Escute, Marlowe, eu acho...
Ele parou de falar quando a porta foi aberta, e Tyrer entrou na sala.
— Bom dia. Você deve ser Phillip Tyrer, da legação. — Pallidar apresentou-se, depois a Marlowe, e acrescentou, em tom jovial: — Lamento profundamente o infortúnio de ontem, mas sinto-me orgulhoso em apertar sua mão. Tanto o Sr. Struan quanto a Srta. Richaud disseram a Babcott que estariam mortos se não fosse Por você.
— É mesmo? — Tyrer mal podia acreditar em seus ouvidos. — Tudo aconteceu muito depressa. Num momento as coisas estavam normais, no instante seguinte corríamos para salvar nossas vidas. Fiquei apavorado.
Agora que dissera em voz alta, Tyrer sentiu-se melhor, e ainda mais quando Os dois militares consideraram o comentário como modéstia, puxaram uma cadeira para que sentasse e ordenaram aos criados para lhe trazerem comida.
— Quando fui vê-lo ontem à noite, você se encontrava morto para o mundo — disse Marlowe. — Sabíamos que Babcott lhe deu sedativos, e por isso creio que ainda não soube do nosso assassino.
Tyrer sentiu o estômago se contrair.
— Assassino?
Eles relataram os acontecimentos. E falaram de Angelique.
— Ela está aqui?
— Está, sim, e demonstrou ter muita coragem.