Do diário de Maria, na manhã seguinte:
Ontem à noite, quando Ralf Hart me olhou, abriu uma porta, como se fosse um ladrão; mas, ao ir embora, não levou nada de mim; ao contrário, deixou o cheiro de rosas - não era um ladrão, mas um noivo que me visitava. Cada ser humano vive seu próprio desejo; faz parte do seu tesouro, e, embora seja uma emoção que pode afastar alguém, geralmente traz quem é importante para perto. É uma emoção que minha alma escolheu, e tão intensa que pode contagiar tudo e todos à minha volta.
Cada dia escolho a verdade com a qual pretendo viver. Procuro ser prática, eficiente, profissional. Mas gostaria de poder escolher, sempre, o desejo como meu companheiro.
Não por obrigação, nem para atenuar a solidão de minha vida, mas porque é bom. Sim, é
muito bom.
Copacabana tinha, em média, trinta e oito mulheres que freqüentavam a casa com regularidade, embora apenas uma, a filipina Nyah, pudesse ser considerada por Maria como uma relação próxima à amizade. A média de permanência ali era de no mínimo seis meses, e no máximo três anos - porque logo recebiam um convite para casar, ser amante fixa ou, se já não conseguiam mais atrair a atenção dos fregueses, Milan pedia delicadamente que procurassem um outro lugar de trabalho. Por isso, era importante respeitar a clientela de cada uma, e jamais procurar seduzir os homens que ali entravam e iam direto para determinada moça. Além de ser desonesto, podia ser muito perigoso; na semana anterior, uma colombiana tirara delicadamente uma lâmina de barbear do bolso, colocara em cima do copo de uma iugoslava e dissera com a voz mais tranqüila do mundo que a iria desfigurar, se insistisse em aceitar de novo o convite de um certo diretor de banco que costumava ir ali com regularidade. A iugoslava alegara que o homem era livre, e se a tinha escolhido, não podia recusar. Naquela noite, o homem entrou, cumprimentou a colombiana e foi para a mesa onde estava a outra. Tomaram o drink, dançaram e - Maria achou que era provocação demais - a iugoslava piscou para a outra, como se estivesse dizendo: "Está vendo? Ele me escolheu!" Mas aquela piscadela de olho continha muitas outras coisas não ditas: ele me escolheu porque sou mais bela, porque estive com ele na semana passada e ele gostou, porque sou jovem. A colombiana não disse nada. Quando a sérvia voltou, duas horas depois, ela sentou-se ao seu lado, tirou a lâmina de barbear do bolso e cortou o rosto da outra perto da orelha: nada profundo, nada perigoso, apenas o suficiente para deixar uma pequena cicatriz que a lembrasse para sempre daquela noite. As duas se atracaram, o sangue espirrou para todo lado, os fregueses saíram assustados. Quando a polícia chegou querendo saber o que se passava, a iugoslava disse que havia cortado o seu rosto em um copo que caíra de uma estante (não existiam estantes no Copacabana). Essa era a lei do silêncio, ou a "omertà", como gostavam de chamar as prostitutas italianas: tudo que tivesse que ser resolvido na Rue de Berne, do amor à morte, seria resolvido - mas sem a interferência da lei. Ali, eles faziam a lei. A polícia sabia da "omertà", viu que a mulher estava mentindo, mas não insistiu no assunto - ia custar muito dinheiro ao contribuinte suíço se resolvesse prender, processar e alimentar uma prostituta durante o tempo em que estivesse na prisão. Milan agradeceu aos policiais pela pronta interferência, disse que era um mal-entendido, ou alguma intriga de um concorrente.
Assim que eles saíram, pediu que as duas nunca mais voltassem ao seu bar. Afinal de contas, o Copacabana era um lugar familiar (uma afirmativa que Maria custava a entender) e tinha uma reputação a zelar (o que a deixava mais intrigada ainda). Ali não havia brigas, porque a primeira lei era respeitar o cliente alheio. A segunda lei era a total discrição, "semelhante à de um banco suíço", dizia ele. Principalmente porque ali se podia confiar nos clientes, que eram selecionados como um banco seleciona os seus - baseado na conta corrente, mas também na folha corrida, ou seja, nos bons antecedentes.
Às vezes havia algum equívoco, alguns raros casos de nãopagamento, de agressão ou de ameaças às moças, mas nos muitos anos em que criara e desenvolvera com esforço a fama de sua boate, Milan já sabia identificar quem devia ou não freqüentar a casa. Nenhuma das mulheres sabia exatamente qual era o seu critério, porém mais de uma vez já tinham visto alguém bem- vestido ser informado de que a boate estava cheia na quela noite
(embora estivesse vazia) e nas noites seguintes (ou seja: por favor, não volte). Também