Tem sido extraordinariamente difícil esta noite. Antes mesmo de a Millie chegar, já ele ameaçava recuar, enumerando uma lista de preocupações. Tens a certeza que é seguro ser alvejado com um cartucho vazio? Não foi assim que o Brandon Lee morreu? E se ela decidir antes esfaquear-me?
Finalmente, convenci-o a ir avante com a cena em que fingia estrangular-me. E, depois de a Millie o ter alvejado com o cartucho vazio e ele não ter morrido, pensava que tínhamos ultrapassado isto – a parte mais difícil estava feita. Só que agora parece estar a ter dificuldades em sorver ar para os seus pulmões.
– Não sou capaz – diz, engolindo em seco. Tem a fronte transpirada e as suas poderosas sobrancelhas fundiram-se ao meio da testa. – Não posso alvejá-lo, Wendy. Por favor, não me obrigues.
Está a brincar? Passámos meses a engendrar isto juntos. Tivemos tanto cuidado em entrar sempre pela porta das traseiras e preparar o cenário exatamente da forma certa. Mal saio do apartamento, pois não posso correr o risco de me cruzar com a Millie, e tenho dedicado toda a minha energia a dar a impressão que o Douglas ainda vive aqui. Cheguei mesmo a comprar um monte de roupa de homem para ela poder lavar. (Apesar de, no primeiro dia, me ter estupidamente esquecido de a desdobrar toda. Estou certa que achou que éramos um bando de psicopatas que dobram a própria roupa suja.) Gastei tanto tempo e energia a planear tudo isto.
E agora aqui está ele, prestes a arruinar tudo.
– És absolutamente ridículo – cerro os dentes. – Qual é o teu problema? Era este o plano desde o início! É assim que vamos conseguir tudo o que queremos.
– Eu não quero isto! – a sua voz é um sussurro urgente. – Só quero estar contigo. E ainda podemos – atravessa a cozinha e tenta enlaçar-me a cintura com as mãos. – Escuta, não temos de fazer isto. Podemos partir agora mesmo. Tu deixas o Douglas, eu deixo a Marybeth, e podemos estar juntos. Não temos de o matar.
– Só que então não teremos
– Não quero fazer isto. – Agora está a choramingar. –Não quero matá-lo, Wendy. Por favor, não me obrigues a fazer isto.
Oh, Senhor.
Estou há demasiado tempo nesta cozinha. O Douglas vai começar a perguntar-se por que estou a demorar tanto e virá investigar. Ou pode até ouvir o Russell a entrar em pânico. Não tenho tempo para fazer um discurso motivacional. Tenho de tratar disto eu mesma.
De debaixo do lava-loiça, tiro um par das luvas de borracha descartáveis que a Millie usa para limpar a cozinha. Enfio-as nas mãos, servindo depois ao meu marido um último copo de água. Agarro na arma, mas, após hesitar um pouco, guardo-a no bolso do meu casaco. Os bolsos são grandes e a arma cabe perfeitamente – é como se, ao vesti-lo, soubesse já que ia ter de fazer isto, pois o Russell ia portar-se como um bebé grande e quase dar cabo de tudo.
Quando regresso à sala de estar, o Douglas está sentado no sofá, a folhear a pilha de papéis que é o nosso acordo de divórcio. Há muito que me pede para o assinar, e eu tenho vindo a recusar. Sabia que aceitar fazê-lo o faria vir aqui.
Com a mão livre, tateio a arma no bolso do meu casaco. É pesada, distendendo ligeiramente o tecido. Não há razões para esperar. Podia sacá-la agora mesmo e matá-lo. Mas não. Tenho de o fazer olhos nos olhos. Para que pareça que a Millie o alvejou de frente.
E, além do mais, parte de mim quer ver-lhe a cara quando o fizer. Para que entenda as consequências de se meter comigo. Tentou tirar-me tudo e deixar-me na miséria, e agora terá o que merece.
Rapidamente, pouso o copo de água em cima da mesa, antes que possa reparar que estou a usar luvas de borracha. Em seguida, enfio as mãos de novo nos bolsos. Foi a Millie quem arrumou este conjunto de loiça, pelo que as suas impressões digitais estarão espalhadas por todo o copo. É demasiado perfeito.
– Tenho uma caneta por aqui algures – murmura o Douglas, vasculhando o interior da velha pasta. Ao fim de um momento, tira uma esferográfica. – Aqui está.
– Muito bem, então. – Os meus dedos cerram-se em torno do revólver no meu bolso. – Vamos acabar com isto, como disseste.
O Douglas começa a estender-me os papéis, mas depois para. Os seus ombros descaem.
– Não quero que seja assim, Wendy.
Franzo-lhe o sobrolho.
– O que quer isso dizer?
– Quer dizer que... – Atira os papéis do divórcio para cima da mesa de café. – Eu amo-te, Wendy. Não me quero divorciar. Tenho andado doente com isso. Não interessa o que aconteceu no passado... Gostaria de começar de novo. Só nós os dois.