– Direi à polícia que estava errada. – A minha voz adquiriu um timbre histérico. – Dir-lhes-ei que não estava lá de todo. Que me enganei acerca de tudo.
Bem posso prometer-lhe isso, tendo em conta que a polícia tem as gravações que mostram que a Millie nunca esteve no apartamento ao mesmo tempo que o verdadeiro Douglas. Mas a Millie não sabe disso. Quando sair daqui, há fortes probabilidades que a polícia me leve sob custódia, mas aceito isso. Irei para a prisão, se for preciso, mas não quero morrer.
A Millie não parece sensibilizada pela minha oferta. Dá outro passo em frente enquanto eu tento recuar, mas não tenho nenhum sítio para onde ir.
– Por favor – imploro-lhe. – Por favor, não faça isto.
Nesse momento, um relâmpago ilumina a divisão – demasiado tarde para me ajudar a procurar uma arma na bancada. Os meus olhos esforçam-se por assimilar a pequena centelha de luz e, por um instante, consigo ver claramente o rosto da mulher que avança para mim com uma faca na mão direita.
Oh, Jesus Cristo.
Não é a Millie.
72
Marybeth? – sussurro.
A secretária do meu marido – que acontece ser também a mulher do Russell – está agora a poucos passos de mim, trespassando-me com o seu olhar. Nunca antes tive medo da Marybeth. Mesmo quando andava a dormir com o seu marido, nunca lhe dediquei um segundo pensamento. Parecia razoavelmente simpática, e o Russell nunca me disse o contrário.
Subestimei-a. A garganta cortada do Russell é prova disso.
Sou – objetivamente – mais atraente do que a Marybeth. Tem mais uns dez anos do que eu e nota-se. O seu cabelo louro é fibroso, tem finas rugas em torno dos olhos e à volta da boca, e a pele sob o seu queixo pende demasiado frouxa. Mas então a cozinha mergulha de novo nas trevas e ela torna-se outra vez uma silhueta.
– Sente-se – ordena a Marybeth.
– Eu... não consigo ver nada – gaguejo.
Por um segundo, sou ofuscada por outro clarão de luz –ela ligou a lanterna do seu telemóvel. Aponta-a na direção da mesa da cozinha: um pequeno quadrado de madeira com duas cadeiras dobráveis, uma de cada lado. Cambaleio em direção à mesa e deixo-me cair num dos dois lugares, segundos antes de as minhas pernas cederem.
A Marybeth senta-se na outra cadeira. Agora que temos a luz do telemóvel, posso distinguir de novo os traços do seu rosto. Os seus lábios formam uma linha reta e os seus geralmente brandos olhos azuis são como punhais. Veste uma gabardina manchada com o sangue do Russell. Parece absolutamente aterradora.
Mas tiro algum conforto de ainda não me ter matado. Por alguma razão, quer-me viva, o que me dá algum tempo para descobrir como sair daqui.
– O que quer? – pergunto-lhe.
Ela pestaneja. O branco dos seus olhos reluz, engastado numas órbitas escuras e encovadas.
– Há quanto tempo andava a dormir com o meu marido?
Abro a boca, ponderando se devia mentir. Mas, então, olho-a nos olhos e entendo que é melhor não brincar com esta mulher.
– Dez meses.
– Dez meses – repete, cuspindo as palavras. – Mesmo debaixo do meu nariz. Éramos felizes até ter aparecido, sabe? Fomo-lo durante vinte anos. Ele não era perfeito, mas amava-me. – A voz falha-lhe. – Mas, assim que a conheceu...
– Peço imensa desculpa. Não é como se o tivéssemos planeado.
– Mas tinham planos. Grandes planos. Ele planeava deixar-me por si...
Não o diz como uma pergunta, por isso mantenho a boca fechada. O Russell dizia que planeava deixar a Marybeth por mim, mas, mesmo no fim, já não estava assim tão certa. Acabou por não ser o homem que eu julgava que era.
– Ele amava-a muito – acabo por dizer, esperando aplacá-la.
– Então por que andava a dormir consigo? – explode.
– Olhe – digo, tentando manter a calma, apesar de o meu coração continuar acelerado. – Ele queria voltar para si. Estava com dúvidas. Se não o tivesse...
Ela olha-me fixamente. Não me posso esquecer que esta mulher acaba de assassinar o marido. Não está à procura de voltar a juntar-se com ele. A única coisa no seu pensamento é a vingança.
– E o Doug... – Os seus olhos são como gelo ao fitarem os meus. – Matou-o, não foi? Juntamente com o Russell.
Abro a boca, pronta a negar. Mas, então, vejo a expressão nos seus olhos e percebo que não era uma pergunta.
– Sim, matei.
Por uma fração de segundo, os seus olhos suavizam-se ao encherem-se de lágrimas.
– O Doug Garrick era um homem realmente bom. O melhor. Era como um irmão para mim.
– Eu sei. E... lamento.
– Lamenta! – explode. – Não lhe passou à frente na fila do cinema. Assassinou-o! Está morto por sua causa!
Cerro os lábios, temendo dizer mais uma palavra, pois nada que eu diga irá corrigir a situação. A Marybeth está furiosa comigo – dormi com o seu marido e matei o seu amado chefe. Mas isso não quer dizer que mereça morrer aqui, às suas mãos.
Tenho de encontrar uma saída.
Os meus olhos pousam na faca segura na sua mão direita. Tem-na no colo e ainda está ensopada com o sangue do Russell – o seu sangue está absolutamente em todo o lado. Haverá alguma hipótese de lhe poder tirar a faca? A Marybeth não está propriamente no auge da forma física.