– De alguma forma, escapou-nos – diz. – Diz que a põe longe da vista porque os residentes não gostam de sentir que estão a ser espiados. E eis a parte engraçada: foi o seu marido quem, há cerca de um ano, forneceu o equipamento de segurança através da sua empresa, pois estava preocupado com aquela entrada das traseiras.
– Ah... ah, foi? – pergunto, embargada. Oiço um estrondo que parece vir da casa de banho, seguido de um chape de água, mas ignoro-o. Se o Russell tentou sair da casa de banho e caiu, terá simplesmente de se levantar sozinho.
– Sim, e acabámos agora mesmo de analisar todas as gravações. E nem quero acreditar. Segundo essas gravações, o seu marido não ia àquele apartamento há meses. Do género, durante todo o tempo em que a menina Calloway lá trabalhou. Portanto, não sei como andavam a ter um caso no apartamento, se nunca lá esteve sequer. A senhora sabe?
A minha boca parece quase demasiado seca para deixar sair quaisquer palavras, mas consigo responder:
– Talvez se encontrassem noutro sítio?
– Talvez. Só que não vejo quaisquer cobranças nos cartões de crédito por quartos de hotel ou algo parecido.
– É claro que não ia pagar com o cartão de crédito. Então eu veria. Provavelmente pagou em dinheiro.
– Talvez tenha razão – reconhece Ramirez. – Mas eis a parte realmente interessante. Na noite em que o seu marido foi assassinado, só apareceu à entrada das traseiras depois da hora a que o porteiro viu a Millie sair do edifício.
– Isso... isso é estranho...
Se viu essas gravações, também deve saber que eu estava no edifício à hora a que o Douglas foi assassinado. E, se sabe isso, estou em grandes sarilhos.
– Escute – diz. – Perguntava-me se podia vir à esquadra para esclarecer alguma confusão da nossa parte. Vamos enviar um carro-patrulha a sua casa.
– Eu... não estou em minha casa neste momento...
– Ah, não? Onde está, então?
Afasto o telemóvel do ouvido. A voz do detetive Ramirez soa subitamente distante:
– Estou? Senhora Garrick?
Carrego no botão vermelho para desligar a chamada e largo o telemóvel em cima da bancada, como se me pudesse queimar. Debruço-me sobre o lava-loiça da cozinha, combatendo uma vaga de náuseas e de tonturas.
Não posso acreditar que havia uma câmara na entrada das traseiras. Perguntei espaticamente por isso e disseram-me que não havia nenhuma. Mas isso era antes de o Douglas tão generosamente ter fornecido uma, porque é claro que faria algo assim – era esse o tipo de cromo preocupado, generoso e apaixonado por tecnologia que o meu marido era. Ou talvez tenha sido ainda outra tentativa de documentar o que eu andava a fazer nas suas costas.
Se havia uma câmara, isso bastará para ilibar a Millie. E cravar um prego bem grande no meu caixão.
Esfrego as têmporas, que começaram a latejar. Tenho de descobrir uma maneira de dar a volta a isto, porque não vou passar o resto da minha vida na prisão. Mas tenho algumas ideias. Já representei tão bem o papel de esposa maltratada para a Millie. Terei apenas de contar a história do meu terrível marido abusivo. Talvez, nessa noite fatídica, viesse a investir para mim, pronto a espancar-me até à inconsciência, pelo que eu fiz o que tinha de fazer. A legítima defesa é legal – era ele ou eu.
Isto poderia resultar.
– Russell! – chamo. – Precisamos de falar.
O Russell é uma enorme complicação. Se a polícia analisou as transmissões de vídeo da entrada das traseiras, tê-lo-á visto entrar também nessa noite. Mas talvez não haja nada a ligá-lo diretamente a mim. Ele e eu temos de combinar as nossas histórias. Espero que não aja como um bebé em relação a tudo isto. Consigo imaginá-lo a quebrar e a contar toda a história sórdida à polícia.
Corro para a casa de banho. O Russell não vai ficar satisfeito ao ouvir isto – era esperar demasiado que tudo fluísse sem entraves. Mas, de uma forma ou de outra, superá-lo-emos. Já antes me vi em más situações e saí delas.
– Russell – volto a dizer. – O que...
Ao chegar à porta da casa de banho, a primeira coisa que vejo é todo o vermelho. Tanto vermelho, a nadar diante dos meus olhos. A água na banheira, que costumava ser transparente, a roçar o enevoado, está agora de um profundo carmesim. Ergo o olhar e localizo a fonte do sangue, vindo de uma ferida hiante na garganta do Russell.
E, então, olho para o seu rosto. Para o queixo caído. Para os olhos que fitam fixamente em frente, sem pestanejar.
70
O Russell está morto.
Assassinado.
E aconteceu entre o momento em que saí da casa de banho e agora.
Lembro-me da janela aberta que avistei anteriormente ao sair para ir buscar o vinho. Alguém entrou nesta cabana. Alguém veio a esta cabana e fez isto ao Russell.
Temo saber quem é esse alguém. Neste momento, há uma pessoa que está numa vendetta contra mim, bem como um historial de comportamento violento. E a polícia foi incapaz de a encontrar.
– Millie? – chamo.
Não obtenho resposta.
E, então, as luzes apagam-se.