— Foi... extraordinário... ela se mostrou extraordinária, se é isso o que quer saber.
— Como assim?
— Ela desceu por volta das cinco horas, foi direto ver Malcolm Struan, ficou com ele até a hora do jantar... foi a ocasião em que tornei a vê-la. Parecia... parecia mais velha, não, não é essa a palavra certa, não mais velha, mas sim mais séria do que antes, mecânica. George diz que ela ainda se encontra numa espécie de estado de choque. Durante o jantar, Sir William disse que a levaria de volta a Iocoama, mas ela agradeceu e recusou, alegando que primeiro queria ter certeza de que Malcolm ia ficar bom. Nem ele, nem George, ninguém conseguiu persuadi-la a mudar de idéia. Ela mal comeu, e retornou em seguida ao quarto de Malcolm na enfermaria, ali permaneceu, insistiu que instalassem um catre ao lado da cama, para poder estar disponível, se por acaso ele precisasse. Nos dois dias seguintes, até ontem, quando voltei a Iocoama, ela mal saiu do seu lado, e quase não falou com ninguém.
Marlowe reprimiu um suspiro.
— Ela deve amá-lo.
— Essa é a parte estranha. Pallidar e eu achamos que não é esse o motivo. É quase como se ela... bem, desencarnada é uma palavra forte demais. A impressão é de que ela vive parcialmente num sonho, e só se sente segura ao lado de Malcolm.
— Santo Deus! O que disse o Serra-Ossos?
— Ele se limitou a dar de ombros, disse que devíamos ser pacientes, não nos preocuparmos, e que ela é o melhor tônico que Malcolm Struan podia ter.
— Posso imaginar. Como ele está realmente?
— Drogado na maior parte do tempo, sentindo muita dor, vomitando, os intestinos soltos... não sei como ela suporta o cheiro, apesar de a janela ficar aberta durante todo o tempo.
O medo envolveu os dois, ao pensamento de ficar tão ferido, tão impotente. Tyrer olhou fixamente para a frente, a fim de esconder suas emoções, ainda profundamente consciente de que seu próprio ferimento não sarara por completo, sabendo que ainda podia gangrenar, e que seu sono era povoado por pesadelos com samurai
— Todas as vezes em que fui visitar Malcolm... e para vê-la, devo ser sincero... ela me respondeu apenas com “sim, não, ou não sei”. Depois de algum tempo, acabei desistindo. Mas ela continua atraente como sempre.
Marlowe especulou: Se Struan não estivesse no caminho, ela seria mesmo inacessível? Até que ponto Tyrer poderia ser um sério rival? Pallidar ele descartou, não estava no mesmo nível... Angelique jamais poderia gostar daquele idiota Pomposo.
— Ei, olhe só! — exclamou Tyrer.
Estavam contornando o promontório e podiam avistar à frente a vasta baía de Iedo e o mar aberto a boreste, a fumaça dos fogos de cozinha da imensa cidade e a rodeá-la, a paisagem dominada pelo castelo. Espantoso era o fato de que a cidade se encontrava quase vazia das incontáveis barcas, sampanas e embarcações de pesca que normalmente abundavam, as poucas ainda restantes se encaminhando pesadas para a praia. Tyrer se mostrou apreensivo.
— Vai haver guerra?
Depois de uma pausa, Marlowe respondeu:
— Eles foram avisados. A maioria de nós pensa que não, pelo menos não uma guerra em larga escala, ainda não, não desta vez. Haverá incidentes...
E depois, porque gostava de Tyrer e admirava suacoragem, Marlowe resolve abrir sua mente:
— Haverá incidentes e escaramuças, de diversas proporções, alguns dos nossos serão mortos, alguns descobrirão que são covardes, alguns se tornarão heróis, a maioria ficará apavorada de vez em quando, alguns serão condecorados mas não resta a menor dúvida de que, ao final, venceremos.
Tyrer pensou a respeito, recordando como se sentira amedrontado, e como Babcott o convencera de que a primeira vez era a pior, como Marlowe demonstrara sua bravura ao correr atrás do assassino, como Angelique era deslumbrante... e como era bom estar vivo, ser jovem, ter um pé na escada para o posto de “ministro”. Ele sorriu. Sua animação contagiou Marlowe, que murmurou:
— Vale tudo no amor e na guerra, não é mesmo?
Angelique estava sentada junto à janela da enfermaria em Kanagawa, o olhar perdido no espaço, um lenço perfumado encostado no nariz. De vez em quando, os raios do sol passavam pelas nuvens brancas. Por trás dela, Struan se mantinha meio desperto, meio adormecido. No jardim, soldados circulavam em patrulhas constantes. Desde o ataque, a segurança fora redobrada, com mais tropas vindas do acampamento em Iocoama, e Pallidar temporariamente no comando. Uma batida na porta arrancou-a de seu devaneio.
— O que é? — murmurou ela, escondendo o lenço na mão.
Era Lim, acompanhado por um criado chinês, carregando uma bandeja.
— Comida para o amo. A senhorita também vai comer?
— Ponha ali! — ordenou Angelique, apontando para a mesa ao lado da cama. Ela já ia pedir também que trouxessem sua bandeja, como sempre, mas mudou de idéia, achando que seria mais seguro. — Esta noite vou comer na sala de jantar, entende?
— Entendo.